Perda e Dor, Clarice Lispector
Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor.
Mas não há paixão sofrida em dor e amor a que não se siga uma aleluia.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais.
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida.
Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.
Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri.
Nesse momento minha inspiração dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela precisará ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa felicidade asfixiante, como um excesso de ar, sentirei nítida a impotência de ter mais do que uma inspiração, de ultrapassá-la, de possuir a própria coisa – e ser realmente uma estrela. Aonde leva a loucura, a loucura.
Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.
(A paixão segundo G. H.)
Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. (...) Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso.
(Água viva)
Respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você. (...) Não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse o único meio de viver.
(Correspondências)
E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano.
(Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)
O que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.
(Correspondências)
"Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma?
(Laços de família)
Sou um monte intransponível no meu próprio caminho. Mas às vezes por uma palavra tua ou por uma palavra lida, de repente tudo se esclarece.
(Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)
Acordei hoje com tal nostalgia de ser feliz. Eu nunca fui livre na minha vida inteira. Por dentro eu sempre me persegui. Eu me tornei intolerável para mim mesma. Vivo numa dualidade dilacerante. Eu tenho uma aparente liberdade mas estou presa dentro de mim.
(Um sopro de vida)
Às vezes me dá enjoo de gente. Depois passa e fico de novo toda curiosa e atenta. E é só.
(A via crucis do corpo)
O que me atormenta é que tudo é "por enquanto", nada é "sempre".
(Clarice Lispector: esboço para um possível retrato, de Olga Borelli)
Corro perigo
Como toda pessoa que vive
E a única coisa que me espera
É exatamente o inesperado.
(Água viva)
Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia.
Vou perder o resto do medo do mau gosto, vou começar meu exercício de coragem, viver não é coragem, saber que se vive é a coragem.
Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.
Muitas vezes antes de adormecer – nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior – muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho.
Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? também, também.
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida.
A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei onde as coloquei. (...) Ser é de um provisório impalpável. (...) Juro que preciso de soluções. Não posso ficar assim completamente no ar.
Tenho que ter paciência para não me perder dentro de mim: vivo me perdendo de vista. Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco sem saída. Sou um homem que escolheu o silêncio grande. Criar um ser que me contraponha é dentro do silêncio.
Todo momento de achar é um perder-se a si próprio.
Ultrapassar a dor é a pior crueldade. E eu tenho medo disso, eu que sou extremamente moral. Mas agora sei que tenho de ter uma coragem muito maior: a de ter uma outra moral, tão isenta que eu mesma não a entenda e que me assuste.
A dor parece uma ofensa à nossa integridade física.
Eu também queria escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando uma dor física passa. De como o corpo agradecido, ainda arfando, vê a que ponto a alma é também o corpo.
Engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.