Nem sei quem sou
Não me façam ser o que não sou, não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente!
Saiba pois que sou muito senhora da minha vontade, mas pouco amiga de a exprimir; quero que me adivinhem e obedeçam; sou também um pouco altiva, às vezes caprichosa, e por cima de tudo isto tenho um coração exigente. Veja se é possível encontrar tanto defeito junto.
Existo como sou, isso é o que me basta: se ninguém mais no mundo toma conhecimento, eu me sento contente; e se cada um e todos tomam conhecimento, eu contente me sento. Existe um mundo que toma conhecimento, e este é o maior para mim: o mundo de mim mesmo. Se a mim mesmo eu chegar hoje, daqui a dez mil ou dez milhões de anos, posso alcançá-lo bem disposto ou posso bem disposto esperar mais.
Mas não sou completa, não.
Completa lembra realizada.
Realizada é acabada.
Acabada é o que não se renova a cada instante da vida e do mundo.
Eu vivo me completando... mas falta um bocado.
Sou imatura, egocêntrica e debilmente iludida por uma autoestima analgésica de efeito rebote. E dane-se.
Preciso admitir, sou muito irônica, e grossa as vezes, um pouco meiga de vez em quando. Gosto do meu lado apaixonada, mas quase nunca aparece. E meu lado safado chega a me assustar. Protetora e ciumenta ao extremo. Tenho um gênio difícil e um temperamento forte. As vezes sou barraqueira, outras, calma até demais. Dura como uma pedra e frágil como um vidro. Um poço de orgulho, e mais conhecida como a rainha do drama, essa sou eu. E sabe o que mais me assusta? Ainda tem gente que gosta.
O pior é que sou vice-versa e em ziguezague. Sou inconcludente. Mas é preciso me amar como involuntariamente sou. Apenas me responsabilizo pelo que há de voluntário em mim e que é muito pouco.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
…
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
…
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
…
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei -de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe? Nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
…
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
…
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem crescesses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
…
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
…
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Sou de opinião de que não se devia desprezar aquele olhar atentamente para as manchas da parede,para os carvões sobre a grelha,para as nuvens,para a correnteza da água,descobrindo assim coisas maravilhosas.
Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa.
Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor.
Levantei-me. O tiro de misericórdia. Porque estou cansada de me defender. Sou inocente. Até ingênua porque me entrego sem garantias.
Se sou esquecido, devo esquecer também.
Nota: Trecho de poema atribuído a Pablo Neruda, mas sem autoria confirmada.