Mia Couto

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Mia Couto (1955) é um escritor, poeta, jornalista e biólogo moçambicano. Recebeu o Prêmio “União Latina de Literaturas Românticas” e o “Prêmio Camões”, entre outros.

Cidadãos ativos:
Não se pode governar um país como se a política fosse um quintal e a economia fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando. Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
Afinal, culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil. Alguém dizia que governar é tão fácil que todos o sabem fazer até ao dia em que são governo. A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos ativos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.
(E se Obama fosse africano?)

COMPANHEIROS


quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris

em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço

companheiros

semente

No início,
eu queria um instante.
A flor.

Depois,
nem a eternidade me bastava.
E desejava a vertigem
do incêndio partilhado.
O fruto.

Agora,
quero apenas
o que havia antes de haver vida.
A semente.

Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer. – Levanta, ó dono das preguiças.

Salvar é uma grande palavra. E amor é uma palavra ainda maior. Grandes palavras escondem grandes enganos.

'Eu sou o viajante do deserto que, no regresso, diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.
MIA COUTO

“Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro”.

( em "O fio das missangas". Lisboa: Editorial Caminho, 2003.)

Hoje acordei sem mim.
Saí à rua,
para me deixar possuir
pela simples leveza de existir.

O voar não vem da asa. O beija-flor tão abreviadinho de asa, não é o que voa mais perfeito?

⁠A saudade é uma tatuagem na alma: só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.

A mulher é uma nuvem: não há como lhe deitar a âncora.

(in "Na berma de nenhuma estrada")

A descoberta de um lugar exige a temporária morte do viajante.

(...) a razão deste mundo estava num outro mundo inexplicável.

"Sou um menino que envelheceu logo à nascença. Dizem que, por isso, me é proibido contar minha própria história. Quando terminar o relato eu estarei morto. [...] Mesmo assim me intento, faço na palavra o esconderijo do tempo”.


( em "A varanda do frangipani", Lisboa: Editorial Caminho, 1991.)

"A minha pátria é outra e ela está ainda por nascer."
(in " Mulheres de Cinza " pág .36)

Poema Mestiço

escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico

sangro norte
em coração do sul

na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo

hei-de
começar mais tarde

por ora
sou a pegada
do passo por acontecer...

A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro de nós.

O que mais dói na miséria é a
ignorância que ela tem de si mesma.
Confrontados com a ausência de tudo,
os homens abstém-se do sonho,
desarmando-se do desejo de serem outros.
(Em Vozes Anoitecidas)

Mia Couto

Nota: Mia Couto em Vozes Anoitecidas

⁠Em tempos de terror, escolhemos monstros para nos proteger.

O mar foi ontem
o que o idioma pode ser hoje,
basta vencer alguns Adamastores.