Meu Deus
Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.
Meu Deus, não me deixe ficar assim sem acreditar em nada. Ou não me deixe de forma alguma querer fingir que acredito.
Ó MEU DEUS
Ó meu Deus,
se esta é a distância
que separa a mocidade
da infância,
se são teus
estes modos de verdade,
que outros hei de querer meus?
Ó meu Deus,
se este é o caminho
que traça a tua bondade,
devagarinho
farei seus
meu amor, minha saudade,
e em tudo serei adeus.
Os ombros suportam o mundo, chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor, porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco.
Meu Deus...
Ajuda-me a dizer a palavra da verdade na cara dos fortes e a não mentir para obter o aplauso dos débeis.
Se me dás dinheiro, não tomes a minha felicidade, e se me dás forças, não tires o meu raciocínio.
Se me dás êxito, não me tires a humildade; se me dás humildade, não tires a minha dignidade.
Ajuda-me a conhecer a outra face da realidade, e não me deixes acusar os meus adversários, apodando-os de traidores, porque não partilham meu critério.
Ensina-me a amar os outros como amo a mim mesmo e a julgar-me como o faço com os outros.
Não me deixes embriagar com o êxito, quando o consigo, nem a desesperar, se fracasso.
Sobretudo, faz-me sempre recordar que o fracasso é a prova que antecede o êxito.
Ensina-me que a tolerância é o mais alto grau da força e que desejo de vingança é a primeira manifestação da debilidade.
Se me despojas do dinheiro, deixe-me a esperança, e se me despojas do êxito, deixe-me a força de vontade para poder vencer o fracasso.
Se me despojas do dom da saúde deixa-me a graça da fé. Se causo dano a alguém, da-me a força da desculpa, e se alguém me causa dano, da-me a força d perdão e da clemência.
Meu Deus...
Se me esquecer de Ti...
Tu não Te esqueças de mim!
O morcego
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela igneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Meu Deus, meu Deus! Como tudo é esquisito hoje! E ontem tudo era exatamente como de costume. Será que fui eu que mudei à noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei hoje de manhã? Estou quase achando que posso me lembrar de me sentir um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima pergunta é: "Quem é que eu sou?". Ah, essa é a grande charada!
Eu sofri. Meu Deus, como eu sofri com amores errados, ilusões, migalhas, coisas que achava que eram e nunca foram, paixonites enlouquecidas, vontades desesperadas. Eu posso dizer para você com todas as letras do alfabeto eu-sofri-muito. E sim, passou.
O LAÇO E O ABRAÇO
Meu Deus! Como é engraçado!
Eu nunca tinha reparado como é curioso um laço... uma fita dando voltas.
Enrosca-se, mas não se embola, vira, revira, circula e pronto: está dado o
laço. É assim que é o abraço: coração com coração, tudo isso cercado de
braço. É assim que é o laço: um abraço no presente, no cabelo, no vestido,
em qualquer coisa onde o faço.
E quando puxo uma ponta, o que é que acontece? Vai escorregando...
devagarzinho, desmancha, desfaz o abraço.
Solta o presente, o cabelo, fica solto no vestido.
E, na fita, que curioso, não faltou nem um pedaço.
Ah! Então, é assim o amor, a amizade.
Tudo que é sentimento. Como um pedaço de fita.
Enrosca, segura um pouquinho, mas pode se desfazer a qualquer hora,
deixando livre as duas bandas do laço. Por isso é que se diz: laço
afetivo, laço de amizade.
E quando alguém briga, então se diz: romperam-se os laços.
E saem as duas partes, igual meus pedaços de fita, sem perder nenhum
pedaço.
Então o amor e a amizade são isso...
Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam.
Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço!
Olhando você sem dizer nada, só olhando e pensando – Meu Deus, mas como você me dói de vez em quando.
Oh, meu Deus, é impossível! Eu não posso viver sem a minha vida! Eu não posso viver sem a minha alma!
Eu sei que sempre foi meu Deus
Mas sei também
Que é o meu melhor amigo.
Eu sei que me perdi no tempo,
Mas sei que sou muito melhor contigo.