Viver intensamente é o lema da vida de Florbela Espanca. Reconhecida como uma das principais poetisas portuguesas, a artista viveu apenas 36 anos (1894-1930), mas expressou em seus versos sentimentos profundos em relação ao amor, sofrimento, saudade, solidão e morte.
Escreveu contos, poesias, cartas, mas é considerada a poetisa do soneto. Apesar disso, seus poemas não são todos moldados por uma métrica formal. Foi muito criticada por trabalhar com uma escrita muito voltada para o “eu”, mas tal escolha hoje é vista como uma inovação, pois Florbela representa a emancipação literária de mulheres, numa época em que a palavra só era valorizada quando vinda de homens.
A autora escreveu quase 150 poemas, sendo o primeiro escrito com apenas oito anos de idade, quando, segundo suas próprias palavras “já as coisas da vida me davam vontade de chorar”.
Selecionamos 17 dos melhores e mais reconhecidos poemas de Florbela Espanca:
1. O tema da feminilidade
A MULHER
Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!
Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!
Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!
Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!
Florbela Espanca
Ah, essa tal coisa de ser mulher. É um transbordar de sentimentos difícil de explicar, mas Florbela coloca neste poema um grito de feminilidade que diz que as mulheres são capazes de tudo, que por vezes disfarçam suas dores e carregam sobre os ombros um peso enorme, ao mesmo tempo que sorriem para o mundo.
2. Se debater por dentro
ANGÚSTIA
Tortura do pensar! Triste lamento!
Quem nos dera calar a tua voz!
Quem nos dera cá dentro, muito a sós,
Estrangular a hidra num momento!
E não se quer pensar! ... e o pensamento
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós ...
Querer apagar no céu – ó sonho atroz! –
O brilho duma estrela, com o vento! ...
E não se apaga, não ... nada se apaga!
Vem sempre rastejando como a vaga ...
Vem sempre perguntando: “O que te resta? ...”
Ah! não ser mais que o vago, o infinito!
Ser pedaço de gelo, ser granito,
Ser rugido de tigre na floresta!
Florbela Espanca, em "Livro de Mágoas"
Muitos dos poemas de Florbela carregam essa dor existencial que é representada por uma angústia íntima de pensar sobre si. Utilizando elementos antagônicos da natureza: estrela, vento, gelo, floresta, tigre, a autora coloca em palavras o desespero que sentia em simplesmente existir.
3. Palavras de uma princesa abandonada
CONTO DE FADAS
Eu trago-te nas mãos o esquecimento
Das horas más que tens vivido, Amor!
E para as tuas chagas o unguento
Com que sarei a minha própria dor.
Os meus gestos são ondas de Sorrento...
Trago no nome as letras de uma flor...
Foi dos meus olhos garços que um pintor
Tirou a luz para pintar o vento...
Dou-te o que tenho: o astro que dormita,
O manto dos crepúsculos da tarde,
O sol que é d'oiro, a onda que palpita.
Dou-te comigo o mundo que Deus fez!
- Eu sou Aquela de quem tens saudade,
A Princesa do conto: “Era uma vez...”
Florbela Espanca, em "Charneca em Flor"
A gente pensa que vai se deparar com uma história de amor perfeita, mas o nome do poema engana. Florbela fala aqui sobre um amor cortado, sobre abandono e saudade. Talvez um de seus casamentos fracassados (foram três!) tenha inspirado a autora nestes versos.
4. Um amor que merece até oração
DE JOELHOS
“Bendita seja a Mãe que te gerou.”
Bendito o leite que te fez crescer
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!
Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer ...
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver ...
Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!
E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!
Florbela Espanca, em "Livro de Mágoas"
A autora está aqui, “de joelhos”, admirando alguém que deseja. Um alguém que, por onde passa, é bendito, traz magia e felicidade. Os traços de amor intenso se misturam com um sentimento de amargura quando ela diz que bendita será a mulher que, acaso queira tal amor, o tenha. Não seria Florbela Espanca sem um pouco de dor, não é?
5. Florbela por Florbela
EU
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada … a dolorida …
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…
Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca
Um poema que sintetiza muito bem a visão da autora sobre ela mesma e o mundo. Envolve o tema da solidão, da incerteza no destino, e de ser sonhadora e incompreendida pela sociedade em que vive. Parece que a poetisa está sempre em busca de algo que não sabe bem o quê, inclusive dentro de si mesma!
6. Uma poetisa que ninguém pode compreender
IMPOSSÍVEL
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe ...
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?! ...”
Quando se sofre, o que se diz é vão ...
Meu coração, tudo, calado, ouviste ...
Os meus males ninguém mos adivinha ...
A minha Dor não fala, anda sozinha ...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! ...
Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera! ...
Florbela Espanca
Nestes versos fica clara a dor de Florbela em não sentir-se compreendida por ninguém. Suas dores, angústias e medos são alvo de “piadas” e ela termina dizendo que nem em seus milhões de versos é capaz de expressar tamanha aflição que sente em viver.
7. O eu lírico se confessa
MINHA CULPA
A Artur Ledesma
Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou?! Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo... um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém...
Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem
Dum doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...
Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...
Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de vaidades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...
Florbela Espanca, em "Charneca em Flor"
É possível dizer que praticamente toda obra da artista é tomada por um caráter de confissão. Nestes versos, especialmente, ela expressa uma certa religiosidade quando se diz só mais uma pecadora em busca de si mesma.
8. Quando o passado vem para ajudar
O MEU ORGULHO
Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Lembro-me que fui a Primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!
As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas... Quem soubera
Porque tudo passou e foi quimera,
E porque os muros velhos não dão rosas!
O que eu mais amo é que mais me esquece...
E eu sonho: "Quem olvida não merece..."
E já não fico tão abandonada!
Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha,
E também é nobreza não ter nada!
Florbela Espanca, em "Livro de Sóror Saudade"
Aqui parece que a autora está falando de uma Florbela que um dia fora, da qual tinha orgulho, por ser mais “florida”, mais alegre. É este “eu” do passado que dá à poetisa o poder de se autoconhecer e, apesar de estar sozinha, o fato de não se ter nada no presente é algo nobre, que mostra grandeza de espírito.
9. O contrário do amor não é ódio, é indiferença
ÓDIO?
Ódio por Ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto,
Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Com um soturno e enorme Campo Santo!
Nunca mais o amar já é bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda!
Ódio por Ele? Não... não vale a pena...
Florbela Espanca, em "Livro de Sóror Saudade"
Você consegue sentir aqui a ironia de Florbela a falar de um amor que provavelmente a traiu, e que ela já não quer mais? Em pensar que está é um poema escrito há quase 100 anos e ainda tão atual: a história de uma mulher que prefere distância a alimentar ódio por alguém que já amou.
10. Poesia é um ofício de pura energia
SER POETA
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda gente!
Florbela Espanca, em "Charneca em Flor"
Praticamente todos os adjetivos usados por Florbela neste poema são de grandeza. De intensidade, energia, vigor de ser poeta. Considerando a história de vida conturbada da artista, há de se dizer que seu amor pela poesia foi, provavelmente, o que tornou seu cotidiano mais suportável.
11. Todo dia ela faz tudo sempre igual
TÉDIO
Passo pálida e triste. Oiço dizer:
“Que branca que ela é! Parece morta!”
e eu que vou sonhando, vaga, absorta,
não tenho um gesto, ou um olhar sequer ...
Que diga o mundo e a gente o que quiser!
– O que é que isso me faz? O que me importa? ...
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!
O que é que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente ...
O mesmo lago plácido, dormente ...
E os dias, sempre os mesmos, a correr ...
Florbela Espanca, em "Livro de Mágoas"
Ao mesmo tempo que se diz “nem aí” para o que os outros falam, para o fato de ser um pouco mórbida, a poetisa também confessa que tal imagem é fruto do tédio de viver. Dos dias iguais e sua eterna insatisfação em “ser” e existir nesse mundo que ela chama de dormente.
12.Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é
SEM REMÉDIO
Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou ...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.
E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!
Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!
E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!
Florbela Espanca, em "Livro de Mágoas"
Os temas da angústia, da dor, do sofrimento encontram neste poema o tema do amor que, apesar de solidário, não
compreende. Florbela confessa que, desde que foi tomada por uma dor profunda, sente-se perdida e tomada por uma doença de “ser” que não há remédio que cure. Consegue ser triste e bonito ao mesmo tempo, não é?
13. O tema da sexualidade
VOLÚPIA
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
Florbela Espanca, em "Charneca em Flor"
Haja sedução! Florbela mostra neste poema a força de uma mulher capaz de usar calças num tempo em que isso era inaceitável. A sexualidade e o desejo estão presentes neste e em outros poemas da artista que, para o conservadorismo da época, era considerada quase que uma pervertida!
14. Sobre ficarmos cegos de amor
FANATISMO
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist'rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...
"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."
Florbela Espanca, em "Livro de Sóror Saudade"
Um dos poemas mais conhecidos de Florbela Espanca, “Fanatismo”, é sobre amar alguém com todas as forças, sobre ficar vidrada, fanática por um amor a ponto de fazê-lo a sua razão de viver. A poetisa tinha apenas 29 anos quando escreveu esta obra, mas parecia já conhecer de cor as dores de amar.
15. Se perder de tanto amar
AMAR!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
Florbela Espanca, em "Charneca em Flor"
estes versos estão entre os mais famosos de Florbela Espanca: a poetisa que era tão apaixonada pelo amor que encarava ser impossível amar uma pessoa só a vida inteira. Quer pessoa mais apaixonada que essa?
16. Sobre sua terra
ÁRVORES DO ALENTEJO
Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!Florbela Espanca
Este é um poema em que Florbela tece em homenagem à região do Alentejo em Portugal. Ao mesmo tempo que detalha a paisagem rupestre, ela revela seu sofrimento pelo clima da região e pelas "horas mortas" que passa por estar lá.
17. Se não tenho seu amor, posso ser sua amiga?
AMIGA
Deixa-me ser a tua amiga, Amor;
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos
Os beijos que sonhei pra minha boca!...Florbela Espanca
Outro poema de Florbela sobre um amor não correspondido. Em Amiga, o eu-lírico, mesmo não tendo seu coração abraçado por quem ama, ainda deseja a amizade dele, para que talvez um dia, se desenvolva em um amor romântico. Esperança é a palavra da vez neste caso.