Claro que deve haver alguma espécie de... Caio Fernando Abreu
Claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo. A questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? Você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando. Perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão, apesar de tudo viril, repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo?