Multifocal Revela-nos que uma pessoa... Augusto Cury

Multifocal

Revela-nos que uma pessoa multifocalmente inteligente desenvolve a arte de ouvir, a arte da dúvida, a arte da crítica, a arte de pensar antes de reagir, a arte de expor, e não de impor as idéias, e, além disso, trabalha com maturidade suas dores e perdas, transformando seus problemas em desafios, destilando sabedoria dos seus erros, aprendendo a se colocar no lugar do outro e a perceber suas dores e necessidades psicossociais, além de valorizar a cidadania, o humanismo e a democracia das idéias

A jornada mais interessante que um homem pode fazer não é a que ele faz quando viaja pelo espaço ou quando navega pela Internet. Não! A via­gem mais interessante é a que ele empreende quando se interioriza, cami­nha pelas avenidas do seu próprio ser e procura as origens da sua inteligên­cia e os fenômenos que realizam o espetáculo da construção de pensamen­tos e da "usina das emoções".

A espécie humana está no topo da inteligência de milhões de espécies na natureza. Imagine como deve ser complexa a atuação dos fenômenos psíquicos responsáveis pela nossa capacidade de amar, de chorar, de sentir medo, de ter esperança, de antecipar situações do futuro, de resgatar expe­riências passadas. Investigar as origens e os limites da inteligência não é um dever, mas um direito fundamental do homem.

Quando realizamos essa jorna­da intelectual, nunca mais somos os mesmos, pois começamos a repensar e reciclar nossas posturas intelectuais, nossas verdades, nossos paradigmas socioculturais, nossos preconceitos existenciais. Passamos a compreender o homem numa perspectiva humanística: psicológica, filosófica e sociológica. Nossa visão sobre os direitos humanos sofre uma revolução intelectual, pois começamos a compreender e a apreciar a teoria da igualdade a partir da construção da inteligência. Começamos a enxergar que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade intelectual, pois mesmo um africa­no, vivendo em dramática miséria, possui a mesma complexidade nos processos de construção da inteligência que os intelectuais mais brilhantes das universidades.

Somos diferentes? Sim, o material genético apresenta diferenças em cada ser humano; o ambiente social, econômico e cultural também apre­senta inúmeras variáveis na história de cada um. Porém, todas essas dife­renças estão na ponta do grande iceberg da inteligência. Na imensa base desse iceberg somos mais iguais do que imaginamos. Todos penetramos com indescritível habilidade na memória e resgatamos com extremo acer­to, em frações de segundos e em meio a bilhões de opções, as informações que constituirão as cadeias dos pensamentos.

Construir idéias, pensamentos, inferências, sínteses, resgates de expe­riências passadas, são atividades sofisticadíssimas da inteligência. Se não fôssemos seres pensantes não teríamos a "consciência existencial": a cons­ciência de que existimos e de que o mundo existe. Não poderíamos amar, desconfiar, nos alegrar, conferir, ter medo, sonhar, pois tudo o que fizésse­mos seria apenas reações instintivas e não frutos da vontade consciente. Ter uma consciência nos faz, embora fisicamente pequenos, distintos de todo o universo. Sem a consciência, que é o fruto mais espetacular da construção de pensamentos, nós e o universo inteiro seríamos a mesma coisa.

Vivemos num mundo onde o pensamento está massificado, o consu­mismo se tornou uma droga coletiva, a paranóia da estética controla o comportamento, as cotações do dólar e das ações nas bolsas de valores ocupam excessivamente o palco de nossa mente. Um mundo onde as pes­soas buscam o prazer imediato, têm pouco interesse em repensar sua ma­neira de ver a vida e reagir ao mundo e principalmente em investigar os mistérios que norteiam a sua capacidade de pensar.

Uma das mais importantes explorações do homem, se não a maior delas, é a exploração de si mesmo, do seu próprio mundo intrapsíquico. Aprender a se interiorizar; a criar raízes mais profun­das dentro de si mesmo; a explorar a história intrapsíquica arquivada na memória; a questionar os paradigmas socioculturais; a trabalhar com matu­ridade as dores, perdas e frustrações psicossociais; aprender a desenvolver consciência crítica, a conhecer os processos básicos que constroem os pen­samentos e que constituem a consciência existencial são direitos fundamen­tais do homem. Porém, freqüentemente, esses direitos são exercidos com superficialidade na trajetória da vida humana. Um dos principais motivos do aborto desses direitos é que o homem moderno tem vivido uma dramá­tica crise de interiorização.

O ser humano, como complexo ser pensante, é um exímio explorador. Ele explora, ainda > que sem a consciência exploratória, até mesmo o meio ambiente intra-uterino, através dos malabarismos fetais e da deglutição do líquido amniótico. E, ao nascer, em toda a sua trajetória existencial, ex­plora o mundo que o envolve, o rico pool de estímulos sensoriais e in­terpreta-os.

Pelo fato de experimentar, desde sua mais tenra história existencial, os estímulos sensoriais que esquadrinham a arquitetura do mundo extra-psíquico, o homem tem a tendência natural de desenvolver uma trajetória exploratória exteriorizante. Nessa trajetória, ele se torna cada vez mais ínti­mo do mundo em que está, o extrapsíquico, mas, ao mesmo tempo, torna-se um estranho para si mesmo.

O homem moderno, em detrimento dos avanços da ciência e da tecnicidade, vive a mais angustiante e paradoxal de todas as solidões psicossociais, expressa pelo abandono de si mesmo na trajetória existen­cial. A pior solidão é aquela em que nós mesmos nos abandonamos, e não aquela em que nos sentimos abandonados pelo mundo. É possível nos abandonarmos na trajetória existencial? Veremos que sim. Quando o ho­mem não se repensa, não se questiona, não se recicla, não se reorganiza, ele abandona a si mesmo, pois não se interioriza, ainda que tenha cultura e múltiplas atividades sociais.

O homem que não se interioriza é algoz de si mes­mo, sofre de uma solidão intransponível e incurável, ainda que viva em multidões.

"O homem que não se interioriza dança a valsa da vida engessado intelectualmente." Sua flexibilidade intelectual fica profundamente reduzi­da para solucionar seus conflitos psicossociais, superar suas contrariedades, frustrações e perdas.

E mais fácil explorar os fenômenos do mundo que nos envolve do que aprender a nos interiorizar e ser caminhantes na trajetória de nosso próprio ser e explorar os fenômenos contidos em nosso mundo intrapsíquico. É mais fácil e confortável explorar os estímulos extrapsíquicos, que sensibilizam nos­so sistema sensorial, do que explorar os sofisticados processos de construção dos pensamentos, o nascedouro e desenvolvimento das idéias, a organização da consciência existencial, as causas psicodinâmicas e histórico-existenciais de nossas misérias, fragilidades, contradições emocionais, etc.

Mergulhado num processo socioeducacional que se ancora na transmissibilidade e no construtivismo do conhecimento exteriorizante, o ho­mem se torna um profissional que aprende a usar, com determinados ní­veis de eficiência, o conhecimento como ferramenta ou instrumento de trabalho. Porém, tem grandes dificuldades para usar o conhecimento para desenvolver a inteligência: aprender a percorrer as avenidas da sua própria mente, conhecer os limites e alcance básicos da construção de pensamen­tos, regular seu processo de interpretação através da democracia das idéias e tornar-se um pensador humanista, que trabalha com dignidade seus er­ros, dores, perdas e frustrações, e aprende a se colocar no lugar do "outro" e a perceber suas dores e necessidades psicossociais.

Procurar a si mesmo é explorar e produzir conhecimento sobre os pro­cessos de construção da inteligência, ou seja, sobre os processos de constru­ção dos pensamentos, sua natureza, cadeias psicodinâmicas, limites, alcan­ce, lógica, práxis, bem como sobre a formação da consciência existencial, da história intrapsíquica arquivada na memória, as bases que sustentam o processo de interpretação e as variáveis que participam do processo de transformação da energia emocional.

Quem sai do discurso intelectual superficial e procura "velejar" para dentro de si mesmo, e vive a aventura ímpar de explorar sua própria men­te, nunca mais será o mesmo, ainda que fique perturbado num emaranha­do de dúvidas sobre o seu próprio ser. Aliás, ao contrário do que dizem os livros de auto-ajuda, a dúvida é o primeiro degrau da sabedoria.

Quem não duvida e critica a si mesmo nunca se posiciona como apren­diz diante da vida e, conseqüentemente, nunca explora com profundidade seu próprio mundo intrapsíquico. Quem aprendeu a vivenciar a arte da dúvida e da crítica na sua trajetória existencial se posiciona como aprendiz diante da vida e, por isso, tem condições intelectuais de repensar seus paradigmas socioculturais e expandir continuamente suas idéias e maturi­dade psicossocial. Todos os pensadores, filósofos, teóricos e cientistas que, de alguma forma, promoveram a ciência, as artes e as idéias humanistas foram, ainda que minimamente, caminhantes nas trajetórias do seu próprio ser e amantes da arte da dúvida e da crítica, enquanto produziam conheci­mento sobre os fenômenos que contemplavam.

O homem que aprende a se interiorizar e a criticar suas "verdades", seus dogmas e seus paradigmas socioculturais estimula a revolução da cons­trução das idéias nos bastidores clandestinos de sua mente. Assim, sai do superficialismo intelectual e, no mínimo, aprende a concluir que os proces­sos de construção da inteligência, dos quais se destacam a produção das cadeias psicodinâmicas dos pensamentos e a formação da consciência exis­tencial do "eu", são intrinsecamente mais complexos que uma explicação psicológica e filosófica meramente especulativa e superficial, que chamo de explicacionismo, psicologismo, filosofismo.

O homem moderno tem vivenciado, com frequencia, uma importante síndrome psicossocial doentia, a qual chamo de "síndrome da exteriorização O ser humano, nos dias atuais, frequentemente só tem coragem de falar de si mesmo quando vai a um psicólogo ou a um psiquiatra. Tem uma necessidade vital de que o mundo gravite em torno de si mesmo. Para ele, doar-se para o outro sem esperar a contrapartida do retorno é um absurdo existencial, um jargão intelectual, um delírio humanístico. O mundo das idéias dos portadores da síndrome da exteriorização existencial tem pouco espaço para uma compreensão psicossocial e filosófica da existência humana.

Aprender a interiorizar-se é uma arte complexa e difícil de ser conseguida no terreno da existência. O homem moderno tem sido um ávido consumi­dor de idéias positivistas misticistas, psicologistas, como se tal consumo cumprisse, por ele, o papel inalienável e intransferível de caminhar nas trajetórias sinuosas do seu próprio ser e de aprender a expandir sua cons­ciência crítica e maturidade intelecto-emocional.

As letras deveriam servir às ideias e não as idéias às letras e às regras gramaticais, como não poucas vezes acontece. As letras e a gramática deve­riam libertar o pensamento; ser um canal de veiculação das idéias. Porém, nem sempre as frases e os textos mais compreensíveis são mais justos para expressar as idéias de um autor, embora facilitem a vida do leitor. As letras reduzem inevitavelmente as ideias; os labirintos gramaticais, às vezes, apri­sionam os pensamentos. A linguagem tem um grande débito com o pensa­mento, principalmente com o pensamento psicológico e filosófico.

Para termos uma idéia da deficiencia do discurso literário para expres­sar a ciência, basta dizer que os pontos finais das frases, embora úteis para a compreensão da linguagem, são uma mentira científica. Na ciência, não há pontos finais. Tudo é uma seqüência interminável de eventos que mu­tuamente co-interferem. Por isso, não há resposta completa em ciência e, muito menos, há resposta completa na aplicação dos pensamentos procu­rando examinar suas próprias origens, seus próprios processos de constru­ção, limites, alcance, práxis, enfim, compreender a própria fonte que os gera. Na ciência, cada resposta é o começo de novas perguntas...”

(Inteligencia Multifocal)