Foi em uma rara noite chuvosa de... Renata Mulinelli
Foi em uma rara noite chuvosa de dezembro, final de ano, fim do ensino médio. Eles foram deixados, propositalmente, para trás, e riram, satisfeitos com a situação. Martini, cereja, moedas, sorriso, silêncio.
- Vam'bora daqui? Esse cara cantando tá me deixando doida!
Passos incertos em meio a calçada deserta, chuva, vento, liberdade. O silêncio fez mais pelos dois que qualquer frase ensaiada, era mútua a confiança, a cúmplicidade. Passaram juntos por mil situações ao longo do ano, sem jamais precisar falar demasiadamente sobre nenhuma delas, era o olhar, era o sorriso, e bastava. Riram de tudo, deixaram-se enxarcar e chover também, nessa noite não era só do céu que caíam as gotas, a presença dele coloria o céu nublado e aquecia a outra alma deserta, fugitiva. Contaram passos, casos, passado. Cantaram, sentaram no meio da madrugada da cidade. Relembraram, planejaram, enterraram.
Tiveram chance e até intenção de ir além, por instantes imaginaram soltar-se e deixar os instintos e os impulsos agirem, e quem sabe, um leve toque de lábios, uma leve mudança de hábitos, de quem-sabe-o-quê, porque isso é normal, sentiam que era, mas sempre existe alguma coisa, alguma voz lá no fundo que insiste em lembrar que consequências não desistem, e que nenhum dos dois estavam dispostos a arcar. Não havia medo, receio, teor algum de desconforto diante da presença um do outro. Havia só a chuva, o tempo correndo numa outra dimensão, não contabilizada pelos relógios de pulso, um tempo que contava um sentimento nutrido por anos em algumas horas na madrugada chuvosa daquele final de ano, inseguro e confuso.
Não sabiam, não pensava, apenas sentiam.
Cheguei em casa com cabelos, corpo e alma lavadas, o guarda-chuva que carreguei a noite inteira, continuava fechado e agora divertia a lembrança da madrugada mais livre, simples, e justamente por isso, mais incrível do meu ano.