Se pudesse reservaria uma dia na semana... Renata Mulinelli
Se pudesse reservaria uma dia na semana para andar de ônibus, um dia inteiro, sem nome, sem expressão, sem espera, sem expectativa, sem fazer, sem explicar, sem comentar, sem forçar sorrisos, sem esconder lágrimas.. Escolho o ônibus pois não há veículo mais impessoal, assim como pessoal, idas e vindas, passageiros, pessoas, crianças, fixos, aleatórios, rostos, risadas, telefones, choros infantis, a mistura é tanta que é fácil, tão fácil, ficar ali, despercebida, inconsciente e até sub-viva. Observar as ruas, os céus, as nuvens, as árvores, eventuais gotas de chuva desenhando na janela as mais variadas formas e lembranças, e o sol a mudar-lhe os tons, as cores trazendo de volta brilhos e saudades, vontades.. Os vultos, os prédios, os vazios, os horizontes, os pássaros, carros, sons, silêncio.
Pensar, sonhar, lembrar, cantarolar, se perder, esquecer, se encontrar. Fingir, por um instante só estar indo pra algum outro lugar, qualquer seja, imaginar.. Se soltar, voar, mergulhar, aterrissar. Construir personagens para cada um dos outros passageiros, inventar profissões, infâncias, planos, medos, passados, casamentos, amores não-correspondidos, paixões malucas. Criar para si próprio papéis e representá-los, ainda que só convença teu ego, e sofrer dores inexistentes, e contentar-se com realizações falsas, e imaginar-se em férias incoerentes, e criar, e fingir, e ser, e sentir, quem se importa? Como se fôssemos sempre os mesmos a cada amanhecer, como se tivéssemos controle sobre cada pensamento e o poder de prever o real sentido dos acontecimentos, as mudanças, as sequelas que perdas e ganhos causam diariamente, as inconstantes, as incógnitas e todas essas outras palavras difíceis que tentamos tornar irreais e distantes..
Mas se pudesse ao menos viajar um dia inteiro por semana, um dia apenas de cada sete que somos levados a manter calmos, convenientes, nos eixos, nos planos, no roteiro. Se pudesse, um dia apenas, me criar, pintar o mundo de cor-de-rosa, sim. Ou de laranja se me desse na idéia, dar asas aos meus elefantes e pantufas as centopéias, e se eu quisesse tirar dinheiro da cueca de quem carrega e entregar a quem nem colchão tem? Pediria apenas 24 horas de cada 168 horas que precisamos fazer dar certo, que precisamos concordar quietos, que fingimos que aceitamos, que transformamos lágrimas em dentes brancos.
E se eu quisesse me dar o poder de mudar todas essas coisas que me fazem não querer ser parte de um mundo assim..