Para um roxo dia de sol de fevereiro... Caio Fernando Abreu
Para um roxo dia de sol de fevereiro
Este vazio de amor todos os dias: a cabeça pesada ao meio-dia, a boca amarga, um cheiro de sono e solidão nos cabelos, uma xícara de café bem forte espantando os arcanos da madrugada, e muitos cigarros, as roupas, o espelho, os colares, as pulseiras. Procuro e não acho. Mas saio para a rua todo de roxo, a barriga de fora.
O sol bate forte na cabeça. O sol bate forte e reflete na calçada e dissolve o corpo em gotas pegajosas escorrendo nojentas e brilhantes pelos braços e pelas pernas por baixo do roxo até cair sobre o asfalto formando pequenas poças que logo se evaporam subindo pelos raios do sol cor de cenoura de fevereiro para novamente descer do alto despertando o suor roxo adormecido no meu corpo.
E na esquina riem. Eu não ligo, mas riem e falam baixinho entre si, homens dispostos na calçada com as camisas abertas entre as verduras da tenda da esquina, os homens de pelos aparecendo pelas aberturas da camisa cochicham entre si e riem. Mas eu piso firme e ergo a cabeça e dentro do meu roxo caminho só-rindo entre as verduras e os cochichos, e ninguém entende: mas silenciam e principiam a rir baixo, apenas para eles, e não têm coragem de dizer nada. Eu passo por seu silêncio irônico e perplexo, a minha bolsa oscila, é como se o sol coroasse minha cabeça e ninguém soubesse ao certo se rir ou calar, de espanto, porque nunca naquela rua passou alguém coroado por um sol roxo de fevereiro.
Depois são os corredores e as escadas e o balcão claro do bar e os grupos de pessoas que não distingo umas das outras, mas vou sorrindo, sou um projétil orientado até certo ponto, depois dele, e é agora o depois dele vou furando o desconhecido, violentando o mistério, vou penetrando no incompreensível, e sorrio para o inesperado, o corpo ereto projetado, e alguém me faz uma saudação oriental na porta de entrada e eu sorrio ainda mais largo: é alguém semelhante a um cão são bernardo, falta apenas o barrilzinho de chocolate, desses abençoados que riem o tempo todo e o tempo todo cantam e dizem coisas e soltam notas musicais por entre os pelos espessos da barba e do cabelo grande.
E entro na sala e sinto que os olhares se debruçam sobre mim e cumprimento alguns e outros e não penso nada: gozo a glória deste momento e sei que brilho mesmo sem saber para onde vou. E tombo sobre a mesa e tento arranjar no rosto um ar compungido, qualquer coisa modesta e bucólica, à beira do perdão, um olhar no horizonte nas janelas do arquivo, para que me amem, para que se condoam, para que não se ofendam com meu sol de hoje.
Mas hoje. Hoje não. É impossível perdoar no meio destas máquinas histéricas e destas pessoas que tão pouco sabem de si destas calças desbotadas do feltro verde do jornal mural das vozes que passam misturando marchas de carnaval John Lennon e Carlos Gardel é impossível sofrer entre os telefones que gritam e o suor que escorre e as laudas numeradas e as pilhas de jornais e livros e a porta que de vez em quando abre libertando vanderléias comerciais e meninos de roupas coloridas e ar desvairado.
E hoje não. Que não me doa hoje o existir dos outros, que não me doa hoje pensar nessa coisa puída de todos os dias, que não me comovam os olhos alheios e a infinita pobreza dos gestos com que cada um tenta salvar o outro deste barco furado. Que eu mergulhe no roxo deste vazio de amor de hoje e sempre e suporte o sol das cinco horas posteriores, e posteriores, e posteriores ainda.