JANEIRO Enquanto esperava por ela... Carlucho Vitaliano
JANEIRO
Enquanto esperava por ela
Passavam crianças empinando pipas
Homens comentando política
Mulheres falando de moda
Cachorros latindo
Mendigos pedindo esmola
Padres rezando
Putas vendendo o corpo
Promessas vendendo a alma.
Enquanto esperava por ela
Crianças viravam adultos
Homens se desiludiam
Mulheres dormiam maltrapilhas
Cães adoeciam
Mendigos morriam de fome
Padres se perdiam de Deus
Putas apodreciam
Promessas entregavam a alma ao demônio.
Enquanto esperava por ela
Adultos envelheciam
Homens morriam
Mulheres também morriam
Cães nem mais existiam
Mendigos jaziam em covas rasas
Padres renegavam a fé
Putas se suicidavam
O demônio sorria.
Um dia, enfim, ela resolveu vir.
Bateu a porta, mas a porta se calou.
Chamou meu nome e o silêncio se fez saber.
Adentrou a casa tateando o escuro
e o escuro não me deu a ela.
Procurou minha cama e a encontrou arrumada.
Vasculhou cômodo por cômodo e,
diante da inexorável ausência,
atordoada,
sentou-se na poltrona empoeirada e,
enquanto revivia lembranças,
eu vagava por onde me fora dado não ser:
agora fazia parte do cosmo.