Só, por exemplo, olhando para o dia... Clarice Lispector

Só, por exemplo, olhando para o dia passado é que tinham a impressão de ter – de algum modo e por assim dizer à revelia deles, e por isso sem mérito – a impressão de ter vivido. (...)

Não era uma vida de sonho, pois este jamais os orientara. Mas de irrealidade. Embora houvesse momentos em que de repente, por um motivo ou por outro, eles afundassem na realidade. E então lhes parecia ter tocado num fundo de onde ninguém pode passar. (...)

Essa maneira de caber inteiramente no que existia e de tudo ficar tão nitidamente aquilo mesmo – era intolerável. Mas, quando passava, era como se a esposa tivesse bebido de um futuro possível. Aos poucos o futuro dessa mulher passou a se tornar algo que ela trazia para o presente, alguma coisa meditativa e secreta. (...)

Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era heroico suportar. Calados quanto ao entrevisto por cada um, discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um servindo de sacrifício para o outro, amor é sacrifício.

Clarice Lispector Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Nota: Trechos do conto Os obedientes.