O Relojoeiro e o Tempo Numa vila onde o... Marcelo Correia

O Relojoeiro e o Tempo Numa vila onde o tempo parecia ter se aposentado, as casas de pedra desgastadas pelo sol e pela chuva contavam histórias de séculos passa... Frase de Marcelo Correia.

O Relojoeiro e o Tempo
Numa vila onde o tempo parecia ter se aposentado, as casas de pedra desgastadas pelo sol e pela chuva contavam histórias de séculos passados. As ruas, estreitas e sinuosas, eram ladeadas por lampiões que, ao cair da noite, lançavam um brilho dourado sobre os paralelepípedos, criando sombras dançantes que pareciam sussurrar segredos antigos.

No coração dessa vila, quase oculta pela cortina de trepadeiras e flores silvestres, estava a loja do relojoeiro Seu Antônio. Era um santuário de memórias, onde cada relógio pendurado nas paredes era um guardião do tempo, cada carrilhão uma ode ao passado. O ar ali dentro cheirava a óleo de máquina e madeira antiga, e o som dos relógios em uníssono criava uma melodia que falava de um tempo que não voltaria mais.

Seu Antônio, um homem de cabelos prateados e rugas que mapeavam sua vida, era o maestro dessa orquestra silenciosa. Ele passava seus dias inclinado sobre sua bancada de trabalho, os olhos atentos espiando através da lupa, as mãos trêmulas com a precisão de um artista. Para ele, cada relógio que consertava era uma vida que ele tocava, um coração que ele fazia bater novamente.

O relojoeiro não era apenas um artesão de engrenagens e ponteiros; ele era um tecelão de segundos e minutos, um escultor de horas. Em sua loja, que mais parecia uma cápsula do tempo, ele dava vida nova a relógios antigos, cada um com sua história para contar, cada um com seus segredos guardados.

As paredes da loja eram revestidas com relógios de todos os tipos: de bolso, de parede, de cuco, alguns tão antigos que pareciam ter testemunhado a fundação da própria vila. E no meio deles, Seu Antônio, com sua barba por fazer e olhar penetrante, movia-se como um fantasma entre os vivos, um anacronismo ambulante.

Ele não falava muito, mas quando falava, suas palavras tinham o peso da sabedoria. “O tempo”, ele costumava dizer, “é o mais sábio dos conselheiros e o mais cruel dos juízes.” E assim, enquanto consertava os relógios, ele também consertava as almas daqueles que vinham a ele com seus corações partidos, suas esperanças despedaçadas.

Numa dessas tardes em que o sol se punha preguiçosamente, tingindo o céu de laranja e rosa, uma figura desconhecida adentrou a vila. Vestia um manto negro que parecia absorver a luz ao redor, e seu andar era leve, quase como se flutuasse sobre os paralelepípedos. Seu nome era Helena, e ela trazia consigo uma aura de mistério que não passou despercebida pelos moradores da vila.

Helena procurava por Seu Antônio, movida por uma necessidade que ela mesma não conseguia explicar. Quando finalmente chegou à loja do relojoeiro, ela hesitou na porta, como se o limiar entre o interior e o exterior fosse uma fronteira entre dois mundos. Com um suspiro, ela entrou.

O relojoeiro a olhou com curiosidade, mas sem surpresa, como se de alguma forma esperasse por sua visita. “Posso ajudá-la?” perguntou ele, com sua voz que parecia um eco de tempos idos.

Helena aproximou-se da bancada, retirando do bolso um relógio de bolso antigo, com a tampa gravada com símbolos que Seu Antônio nunca vira antes. “Este relógio parou”, disse ela, “no exato momento em que meu avô faleceu. Eu gostaria que o senhor o consertasse, não para que ele marque o tempo novamente, mas para que ele me ajude a entender por que nos apegamos tanto a ele, mesmo sabendo que é finito.”

Seu Antônio pegou o relógio com mãos trêmulas, sentindo o peso da responsabilidade que lhe fora confiada. Enquanto trabalhava no conserto, ele refletia sobre as palavras de Helena. A vila, com sua eterna aparência de outrora, e os relógios, com seus tic-tacs incessantes, eram símbolos da ilusão humana de permanência. Mas Helena, com seu relógio silencioso, era um lembrete da inevitável verdade: tudo tem um fim.

Os dias passaram, e a presença de Helena na vila trouxe uma nova perspectiva aos moradores. Ela falava sobre a importância de viver o presente, de valorizar cada segundo como se fosse o último, pois, de fato, um dia seria. As pessoas começaram a ver a vida não como uma série de amanhãs garantidos, mas como um presente precioso e fugaz.

Quando Seu Antônio finalmente terminou o conserto, ele entregou o relógio a Helena, que o abriu e viu que os ponteiros ainda estavam imóveis. “Ele está consertado?” perguntou ela.

“Sim”, respondeu Seu Antônio, “mas não da maneira que você esperava. Ele não vai mais medir o tempo, mas servirá como um compasso para o seu coração. Cada vez que você olhar para ele, lembre-se de que o tempo é um mestre que nos ensina a valorizar cada momento, pois cada tic-tac é um passo em direção ao nosso último suspiro.”

Helena sorriu, compreendendo que o relojoeiro lhe dera algo muito mais valioso do que o conserto de um relógio: ele lhe dera uma lição sobre a vida.
E assim, a vila onde o tempo parecia ter se aposentado ganhou uma nova história para contar. Uma história sobre uma estranha que veio de longe para aprender sobre o tempo e acabou ensinando a todos sobre a vida. E Seu Antônio, o relojoeiro, tornou-se mais do que um consertador de relógios: tornou-se um consertador de almas, um guia para aqueles que buscavam entender o verdadeiro valor do agora.