⁠PEQUENA COLEÇÃO DE AUSÊNCIAS... José D'Assunção Barros

⁠PEQUENA COLEÇÃO DE AUSÊNCIAS Vocês que ostentam carros importados, E pescoços cheios de colares... Os senhores, que guardam em cada adega Vinhos tão antigos qu... Frase de José D'Assunção Barros.

⁠PEQUENA COLEÇÃO DE AUSÊNCIAS


Vocês que ostentam carros importados,
E pescoços cheios de colares...
Os senhores, que guardam em cada adega
Vinhos tão antigos quanto caros
E as senhoras, que consomem tais fortunas
Como se fossem goles d’água...

Podem rir nas suas festas
Riam!!
Mas é certo que não têm
Algo que só eu tenho

Tenho uma pequena coleção de ausências
Brutais, cínicas ou delicadas.
Rebeldes, elas se acham desalinhadas
No meu vasto galpão de memórias.
Não são tantas (já nem brigam por espaço),
Respeitam-se, uma às outras
E tocam-me todos os dias
Como suaves pingos amargos

Tenho por exemplo a falta daquela morena
Com seu estonteante corpo de sereia...
A mesma que me olhou esticado
Na inquieta mesa de um bar
E que eu deixei escapar dos meus braços
Antes mesmo de segurá-la

Ah, como esta ausência me corrói!
Como queria ter tocado
As madeixas de cabelos negros
A pele macia, os lábios – ser seu herói.
Como queria ter ouvido a voz
Que se esconde por trás do olhar.
Esta ausência, de corpo e voz,
É como um álbum antigo, sem retratos.

Sinto tanto esta ausência
Como a das três loiras que por mim passaram
Cada uma no seu próprio tempo, em seu próprio espaço.
Duas me olharam – uma de frente, uma de lado –
Mas a terceira... tocou-me o ombro
Com o cotovelo assanhado

Como teria sido
Com cada uma delas?
Que movimentos não faríamos?
Quantos kama sutras não reescreveríamos?
Que acordes não somaríamos
À Harmonia Celestial?

Mudando de departamento
– Para a sessão das coisas abstratas –,
Tenho ali no canto, tímida e desencantada,
A resposta altiva e desaforada
Ao insulto infame!
Como não a dei, ela agora está ali
No cantinho dos cantos e desencantos...
Não mais desaforada,
Mas de todos desconfiada;
Não mais altiva,
Mas temerosa e hesitante

E que dizer daquela ali,
Andando de um para o outro lado?
É a piada que não contei!
Como todos teriam rido...
E hoje, eu teria comigo,
Todas as gargalhadas.

Mas o que tenho, é a velha piada
Andando de um lado ao outro,
Resmungando sem graça,
Confusa e consternada...
Senhora! Peço-lhe perdão,
Minha boa e velha piada!

Olhem agora aquela pedra preciosa:
O saxofone que não comprei!
Com ele iria tocar as mais belas melodias
Que hoje me faltam também.
(Elas ecoam por dentro
Do meu teatro de memórias;
Mas não as ouço,
A não ser como sombras pálidas,
Senão como doce ausência)

Senhoras e senhores,
Fiquem com seus pescoços importados,
Com seus carros envoltos por colares!
Que se danem as adegas
De suas batalhas conjugais!

Somente, deixem-me em paz,
Com minha morena e minhas loiras,
Ao som do meu solo sax.
Deixem-me com minha boa velha piada,
Junto à resposta desaforada.
Deixem-me!
Com minha pequena coleção de ausências...

[publicado em Entreletras, vol.12, nº2, 2021]