[UMA CANTIGA E SUA PEREGRINAÇÃO POR UM... José D'Assunção Barros

[UMA CANTIGA E SUA PEREGRINAÇÃO POR UM MUNDO DE NOVAS ESCUTAS] A poesia - diante da possibilidade de ser utilizada como fonte histórica reveladora de discursos,... Frase de José D'Assunção Barros.

[UMA CANTIGA E SUA PEREGRINAÇÃO POR UM MUNDO DE NOVAS ESCUTAS]



A poesia - diante da possibilidade de ser utilizada como fonte histórica reveladora de discursos, informações concretas e expectativas humanas de todos os tipos - ⁠deve ser vista como um veículo de expressão e comunicação que, independentemente das intenções de seu autor, pode conter uma pluralidade de sentidos. Para que um novo sentido se desprenda de um poema ou de uma cantiga,é por vezes bastante que a desloquemos no tempo ou no espaço, que mudemos o seu público ou o trovador ou poeta que a enuncia, que a voltemos contra um novo alvo.

Em sua peregrinação por um mundo em permanente transformação, um verso se transfigura a cada instante, a cada leitura e a cada audição. Para compreender isto, é preciso perceber a leitura e a audição como práticas criadoras.O mundo transfigura o poema porque se transfiguram os olhares e os ouvidos que para ele se voltam, e também porque este poema é inserido em novas práticas, é recriado mesmo a partir destas novas práticas.

O encantador paradoxo da poesia está em que esta transmutação se
opera sem que a forma sequer se altere. Enquanto uma narrativa que é trans
mitida por via oral sofre múltiplas interferências, interpolações, reorganizações do discurso– dada a própria natureza do discurso narrativo –, a poesia, mais ainda a cantiga, está aprisionada dentro de uma grade versificatória, de um ritmo, de um jogo combinatório de sonoridades. Não é possível alterar uma palavra, na sua dimensão material, sem que a estrutura poética desmorone. É isto o que assegura, aliás, a passagem de uma poesia através do tempo em toda a sua integridade material.

No entanto, este poema aprisionado em uma grade versificatória, esta cantiga encerrada em uma estrutura melódica, exercem espetacularmente
toda a sua liberdade. Sem mudar uma única palavra, trazem à tona mil novos
sentidos a cada novo contexto de enunciação. A grade de versos e ritmos não é para eles um túmulo, nem a estrutura melódica é para eles um cárcere. É antes um meio de libertação, que os permite incólumes atravessar todos os
tempos. Já se disse que “um livro muda pelo fato de não mudar enquanto o
mundo muda”. Ainda com mais propriedade podemos considerar isto para o poema, este gênero de discurso que, mesmo quando transmitido basicamente pela oralidade – meio transfigurador por natureza – conserva-se a si mesmo sendo já um “outro”. A estrutura singular do discurso poético lhe dá uma imunidade material, ao mesmo tempo em que de fato não o aprisiona, sobretudo em virtude da natureza fluida da linguagem poética


[trecho do artigo 'A Poesia como Arma de Combate - um estudo sobre as múltiplas reapropriações de uma cantiga medieval-ibérica", Revista Letras (UFPR), vol.90, p.41-42, 2014].