[ACORDES GEOGRÁFICOS] Pensemos no... José D'Assunção Barros
[ACORDES GEOGRÁFICOS]
Pensemos no Espaço, no Meio, e no Homem que habita ou já habitou qualquer uma destas impressionantes cidades modernas ou antigas. Vamos nos concentrar por ora no seu admirável e complexo conjunto de fixos, sejam estes os fixos continentes ou os fixos condutores.
Quando os arqueólogos descobrem cidades que estavam ocultas sob a terra, podem recuperar essas estruturas que, em uma cidade, estabelecem-se sobre o espaço e no meio físico, e que passam a constituir a parcela de meio construído pelo homem - a qual imediatamente se junta ao meio físico natural. O fator humano, o qual aflora sobre o meio e nos limites e formatos de um espaço - e que retroage sobre estes mesmos meio e espaço já os modificando - irá constituir, com a polifonia dos fluxos, os níveis acórdicos superiores.
Quando os arqueólogos descobrem antigos níveis urbanos ou rurais sob a terra, podem resgatá-los das suas sombras e seus silêncios. Lá estão as estruturas materiais construídas pelos seres humanos, e diversos elementos do meio por eles interferidos. As estruturas permanecem, sob muitos aspectos. Trazida uma antiga cidade à luz, os fixos, antes ocultos, ressoam mais uma vez. Mas os fluxos – a vida que não mais existe, ou o movimento que cessou – terão de ser deduzidos sistematicamente dos objetos, dos documentos, das relações que se podem imaginar entre os fixos. É preciso se por à escuta deles, sentir seus aromas imaginários. Será necessário vislumbrar, com imaginação e método, o bioma que sempre se junta ao fator humano para constituir a vida, outrora pulsante e ressonante.
Em uma cidade que fosse subitamente evacuada, permaneceriam dela o acorde-base e os acordes-de-coração. Desapareceriam os acordes-de-cabeça. Os fluxos se encerrariam, a vida desertaria. E a cidade como que se transformaria em uma necrópole, ou em uma cidade-fantasma, ao som de uma grave estrutura harmônica que perdura para além de uma melodia que já se encerrou.
Olhando para os seus fixos – para aquelas formas já sem função – apenas poderíamos deduzir o que realmente foi, um dia, a sua estrutura total, e os processos que a percorreram ou que sobre ela atuaram. Em uma cidade sem os seus habitantes vivos, e sem mais fluxos que não os da própria natureza retomando os seus espaços, já não podemos mais escutar diretamente as vozes que um dia entreteceram o seu plano melódico. Já não se pode mais completar a música, senão a partir dos seus fantasmas, dos espíritos que cantam de um passado-presente que ressoa através das mais diversificadas fontes e vestígios.
Tangenciamos aqui a quarta dimensão: o primeiro e o último feixe de notas de um poliacorde geográfico. Se trouxermos a chave, teremos diante de nossos olhos e ouvidos essa dimensão oculta, entranhada em fontes e resíduos diversos, bem como na própria materialidade ou em seus mais secretos interstícios. O tempo é o acorde secreto que se esconde e se revela no Homem, no Meio e no Espaço. Nos arranjos de espaço, ou nos homens que por lá passarem – se ao menos tiverem uma língua na qual ficaram marcas, ou um simples sistema de gestos – também ali estará o tempo de uma cidade que perdura para muito além de suas ruínas, a ressoar como uma inaudível nota azul, ou a brilhar como um clarão invisível que se espraia em muitas camadas. O Tempo, a outra face do Espaço. O último feixe sonoro de um poliacorde que deve ser pacientemente decifrado por geógrafos e historiadores.
[trecho extraído de 'História, Espaço, Geografia'. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, p.125-126]