SOBRE O ENCASTEALMENTO TEÓRICO Uma... José D'Assunção Barros
SOBRE O ENCASTEALMENTO TEÓRICO
Uma teoria criada ou desenvolvida de acordo com o mais maleável e aberto espírito científico, se cair nas mãos rígidas de certa escola ou grupo de teorizadores-doutrinadores, pode terminar por ser tomada como como recanto a partir do qual se edificará o mais intransponível dos castelos medievais. A princípio são erguidas as torres, com a sua altivez ameaçadora. Depois começa a surgir um castelo, com suas espessas paredes teóricas. Em torno dele, cava-se um fosso de água parada, que logo será habitado por crocodilos prontos a devorar estrangeiros incautos, com a potente dentição formada pelos seus ‘argumentos de autoridade’. Uma sombria ponte levadiça será o único ponto de contato entre o castelo teórico e o mundo, mas apenas para permitir a entrada de víveres, daquilo que reforçará a doutrina. Os eventos que confirmem o que já foi dito serão sempre bem recebidos, como víveres dos quais dependerá a eterna revitalização da doutrina; os demais, ou serão ignorados, ou atirados aos crocodilos. No interior do castelo teórico, será observada uma regra mais rigorosa do que a dos beneditinos. Bem acomodado em uma espécie de altar, e ao invés dos materiais que antes se prestavam a uma livre reflexão teórica, terá surgido um dogma. As tábuas de leitura da realidade, instrumentos para se enxergar a complexidade real de certa maneira e para reelaborar continuamente esta ‘visão de mundo’ que é a teoria, transformaram-se agora em ‘tábuas de certezas’, em mandamentos para serem seguidos e recitados . Eis uma Doutrina. Inscritos na pedra, os mandamentos não poderão mais ser questionados e nem retificados, e aqueles que futuramente insistirem em fazer adaptações na “Lei” serão, imediatamente, inseridos no “livro dos heréticos” ou tratados como apóstatas. Contra as teorias rivais, já não se direcionarão debates científicos, mas sim verdadeiras “Cruzadas” e “guerras santas”. Já no interior da teoria que se converteu em doutrina, reinará doravante a paz das águas paradas, propícias para o ritual de batismo. O ‘fetiche do autor’ poderá ser convocado para a cerimônia de sacralização dos sacerdotes da nova religião. Já nem mais teremos um Castelo, talvez um Templo, com seus próprios deuses.
[texto extraído de 'Teoria da História, vol.1 - princípios fundamentais'. Petrópolis Editora Vozes, 2011, p.254-255]