Eu tinha acabado de dobrar uma... Nanda Liberato
Eu tinha acabado de dobrar uma esquina. Achei que quem vinha, fosse apenas mais um que passava por mim, porém logo à frente descobriria eu que estava totalmente errada. Ao longe consegui avistar a presença de um homem que vinha em minha direção, não pude evitar o meu questionamento, na verdade desde muito pequena me questiono sobre quase tudo e hoje em dia não é diferente, e lá estava eu outra vez me questionando: "-Como um dia tão agitado e corrido duma quarta-feira estivesse tão parado e silencioso como aquele?". Fins de tardes em São Paulo são praticamente portais à caminho para o inferno, principalmente quando todos continuam lutando obstinadamente por uma vaga num dos assentos de um prensor humano absurdamente lotado chamado de ônibus, e isso não é nada comparado com os sacrifícios feitos na segunda condução no meu caso, é como uma mistura grossa de dores, cansaço, descontentamento e insanidade. Está pra nascer um dia de calmaria nessa cidade.
Eu sobrevivi, sobrevivo como todos fazem aqui, e como venho fazendo há muito tempo, se eu sofro por pegar a segunda condução, que adjetivos catastróficos há de ser agregado a quem depende da terceira pra poder chegar em casa e dar aquele beijo de boa noite nos filhos que já adormeceram?
E em meio a turbulência e movimento que esse lugar me traz, vem consigo logo depois o imenso prazer distinto e inigualável de todos os lugares por onde já vivi, e é esse movimento que faz Sampa um lugar fascinante e excepcional.
Este movimento faz com que tudo ao seu redor ganhe vida sem que saiam do lugar, tudo a sua volta é tão energizado que uma parte significante dessa energia é dada a você indiretamente. Essa energia te mostra todos os dias que ainda há vida e que você ainda pode fazer e ser o que quiser, pois enquanto houver fôlego nos pulmões tudo a nós é permitido, afinal, temos apenas uma vida.
É essa batalha contante de fazer melhor a cada dia que a torna maravilhosamente única e original. Todos os dias em que abro meus olhos tenho a plena certeza de que esse lugar é o lugar perfeito pra alguém tão diversificada e tão cheia de vigor como eu, é onde devo ficar, foi por isso que escolhi São Paulo, pela sua fonte de energia inesgotável, ela me faz crer que onde há vida há esperança.
Agora, quem se encontrara longe está a cada passo mais perto. Foi inevitável não olhá-lo, havia uma forte luz que emanava no centro de seu peito, aquele homem que vinha misterioso estava agora acabando com o mistério de sua luz, seu brilho era tão intenso que chegara a incomodar os olhos, e tirar a sua atenção era bem mais que impossível, a luz era forte o bastante pra tocar-me mesmo em meio a essa distância intocável, o sol de fim de tarde era a sua principal energia.
Fiquei atônita, confusa, curiosa. O que era?
Eram passos vagarosos, apertados, pareciam mais querer parar, os pés se molhavam nas pequenas poças que se formaram após um chuvisco leve de fim de tarde. E lá estava ele, vindo em minha direção sem presa, sozinho, num imenso silêncio quase ensurdecedor.
Era simples, porém com uma beleza singular, era quase hipnotizante, estava com uma blusa preta e um casaco semifechado que cobria a estampa que tinha em sua camisa, de calça jeans e um tênis azul surrado que realçavam a sua sensualidade e elegância enquanto caminhava com sua bolsa de costas também preta e uma pequena na mão esquerda, não paro de me perguntar: -O que tem nela?!
Pra ser sincera, eu literalmente pensei alto demais.
"-Mais que droga! Agora ele deve estar pensando que sou uma louca, esquizofrênica e psicopata." Dessa vez pensei baixo e comigo mesma.
Ele possuia olhos que inquietam na calmaria, esses mesmos olhos furtam diretamente e escondem descaradamente toda e qualquer esperança de tentar desvendar os mistérios que neles habitam, o homem com um olhar tão profundo e perigoso que se chegado mais perto, mais sem volta e perdidos se tornará qualquer um que tentar tomá-los a si, sua boca era de uma extrema seriedade que a alma chegava a se arrepiar ao imaginar a esplêndida beleza do seu sorriso.
Apesar da rua ser longa e larga, se tornava pequena e estreita a cada suspiro, era quase asfixiante. Estamos nos aproximando, uma hora isso iria acontecer.
Tensa, trémula e inquieta. Estávamos próximos demais, embora estivéssemos em lados opostos com alguns metros de distância. Meus olhos se fincaram aos teus, se eu tirasse sei que poderia doer, então continuei a olhar, o tempo pode parar no momento mais sagrado da vida, coisas assim só acontecem uma vez na vida, assim dizia a minha vó de coração, e de fato estava certíssima. O sol estava dando-nos um "até daqui à pouco" fazendo-se brilhar pela última vez do dia no peito do secreto, e tive o privilégio de saber o que tanto carregava, o que tanto resplandecia, o mistério que tanto ecoava em mim, a ansiedade era um medalhão, mas não um qualquer, era um escudo representando o inabalável e em seu centro havia a palavra secreta que do "nada" é que se faz o "tudo".
Olhou. Secou-me a garganta, levou minha voz, foi desse jeito que passou por mim, tudo escureceu e agora me encontro no final da esquina, não pude evitar, nem tão pouco deixar de olhar pela última vez, existem situações, visões e sensações tão impossíveis na vida, que muitas das vezes é preciso voltar, olhar e sentir pela última vez o que ainda é alcançável.
Olhou, sorriu e trouxe esperança, foi assim que o vi desaparecer na esquina.
Se eu pudesse voltaria, apenas pra sentir tudo outra vez, mas era tarde demais, algumas oportunidades ocorrem em frações de segundos. É preciso aproveitar cada momento, mesmo os que parecem não ser tão especiais, mas que só pensamos nisso quando o ocorrido já se fora.
Agora estava só, porém mais forte. Sua passagem me trouxe o brilho no escudo inabalável da "FÉ", a palavra secreta que apesar de pequena terá sempre um poder sem medidas, foi com ela que voltei pra casa.
Se eu pudesse voltaria e mudaria esse final, quem dera disso tudo ser real, foi apenas uma metáfora pra enfatizar o que realmente tem valor, esse foi um dos sonhos perdidos que tive a honra de lembrar.
A FÉ é o combustível, a fonte real dessa energia poderosa que faz todo o mundo acordar, levantar e saber que ainda tem vida pro novo dia que está por vir, é com ela que todos voltam pra casa com a esperança pregada no peito crendo na possibilidade do impossível.
E quanto ao rapaz!?
-Ah, ainda não sei quem é, mas adoraria conhecê-lo.