O Anjo Inexperiente No Paraíso... Carlos Siviero
O Anjo Inexperiente
No Paraíso chegou um anjo recém-formado para se juntar a tantos outros que ajudam Deus a elevar o mundo, como se poderia esperar, tinha um santo coração, mas era meio afoito e metido a sabichão, sem muita delonga, começou a reparar em fatos que para ele estavam mal resolvidos, falando consigo mesmo:
Com todo amor e respeito, mas parece que por aqui todos são muito acomodados! Será que ninguém percebe isso? Ainda bem que cheguei a tempo, antes que o mundo se acabe...
Onde já se viu? Tanta crueldade na Terra! Crimes, guerras, injustiças, maldades a perder de vista e parece que ninguém se importa na devida medida! Oras! Pois...
Tem coisas que por mais que eu queira não consigo entender, por exemplo, por que ao invés de ficar ajudando um tantinho aqui e um cadinho ali, com o poder que Deus possui, ele não torna todos em criaturas bondosas de uma vez por todas?
De sua parte, Deus já havia deixado os anjos mais experientes de olho, para evitar que o novato aprontasse alguma antes de se acostumar com o cargo, contudo, sabe como é! Os santos vivem atarefados, protegem aflitos, socorrem acidentados e um breve descuido já foi suficiente para o calouro arquitetar:
Quer saber! Eu mesmo irei mostrar como é que se faz! Esta noite irei a Terra para abençoar a humanidade de forma definitiva e, ao acordar, todas as pessoas estarão permanentemente purificadas, não restará nada de maldade em ninguém e quando eu digo nada, é nadinha mesmo!...
E assim ele fez, na medida em que as pessoas despertavam já tinham se transformado num pedaço-de-pão, inimigos se abraçavam, ladrões procuravam as vítimas para devolver os pertences anteriormente roubados e estas não aceitavam para ajudar os antigos delinquentes, a natureza finalmente passou a ser preservada, as guerras cessaram, os crimes sumiram e não houve mais desentendimentos, ficou tudo uma beleza!
De tão feliz, o anjo benfeitor ponderou:
Ta vendo? Consertei o mundo em dois tempos, ou melhor, num tempo só! Vou chamar o Senhor para mostrar o meu feito! Promoção? Oras! Quem pensou nisso? Afinal, sou um anjo, não tenho ambições egoístas, só quero ajudar...
Cordialmente Deus o atendeu e já meio preocupado questionou por onde ele andou, pois não o tinha visto pelos arredores ultimamente, ao que o anjo respondeu:
Estive preparando uma surpresa que em muito o agradará, meu Senhor, mas, ao invés de contar, gostaria de lhe mostrar pessoalmente se puder me acompanhar...
Porém, não é mesmo fácil cuidar de tudo o que existe, assim, o anjo passou um período meditando por ali até que Deus tivesse uma folguinha para acompanhá-lo.
Enquanto isso, na Terra as coisas aconteciam de forma surpreendente e o que se poderia considerar uma benção tomou forma catastrófica, pois, num lugar sem nenhuma maldade não haveria espaço para indústria bélica e exércitos, assim, foram extintos, com eles também sucumbiram todos os níveis policiais, já que não ocorriam crimes e numa cadeia sem precedentes foram desaparecendo serviços de advocacia, tribunais e promotorias, pois não havia mais causas, hospitais e outros incontáveis seguimentos encolheram sem as vítimas da violência...
Frigoríficos fecharam, uma vez que ninguém tinha coragem de matar sequer uma galinha, no campo, famílias morriam de fome abraçadas em vacas e não se consumia verduras para não tirar o sustento das indefesas lagartas, quase não restavam ocupações e muito menos alimentos, lideranças nivelaram-se aos seguidores e todos seguiam sem rumo, o caos foi instalado e no andar da carruagem, ironicamente, tudo indicava que a raça humana desapareceria da face da terra graças a um surto repentino de extrema bondade...
Mas, como a Providência é sábia, nessa hora o anjo responsável pela tragédia chegou acompanhado do Altíssimo, que não pôde segurar o espanto:
Santo Deus! (que era ele mesmo)
Rapidamente o anjo percebeu a besteira que havia feito e caindo de joelhos implorou perdão na esperança de que o Senhor pudesse restabelecer a ordem...
Mas, com a serenidade que somente o Criador poderia manter diante de tal calamidade, Deus foi explicando com sabedoria que a pior das maldades é a ignorância e uma grande virtude é a paciência, portanto, apesar de tudo poder, uma nova intervenção repentina não seria um bom negócio para consertar a situação, já que justamente o tempo havia sido tirado das criaturas antes que tivessem aprendido a viver com sabedoria, sem perderem o instinto de sobrevivência e a saudável ambição de se tornarem realmente justas e bondosas...
Sendo assim, como medida reparadora, o tempo seria devolvido a todos os mortais atingidos pela remoção de um de seus maiores direitos e durante tal período a sucessão de acontecimentos não seria exatamente aquela que alegrasse seu divino coração, pois o mundo chegaria à beira do extermínio, até que por caminhos tortuosos o instinto de sobrevivência renasceria sob o estigma da maldade, dando a entender que somente os mais fortes sobreviveriam dispondo de todos os bens materiais que sua força pudesse alcançar...
Somente após um longo e tenebroso período de amargura é que a luz da sabedoria voltaria a dar sinais de sua existência através dos novos profetas que seriam enviados para mostrar o caminho a seguir rumo aos bens que realmente importam, dessa forma, tudo o que o anjo pretendia concertar numa espécie de canetada, gerou um enorme atraso e sofrimento ao planeta que ele queria ajudar...
Isto posto, o anjo perdeu qualquer resquício de orgulho que ainda lhe poderia caber e concluiu dirigindo-se ao Criador:
Conforme seus ensinamentos não mereço o título que carrego, já que fui tão estúpido e ainda que me castigue com todo o rigor, entenderei que terá sido muito pouco diante da minha lastimável falha...
O desespero não permitia que o santo parasse de chorar, quando a divina mão fraterna o tocou e um breve diálogo se iniciou:
Acorde! Acorde! Meu bondoso filho, disse Deus...
O que aconteceu? Onde estou? Perguntou o anjo...
Oras! No céu! Você estava tendo um pesadelo, Deus respondeu...
Mas, anjos dormem? O anjo voltou a perguntar...
Não! Deus falou, contudo, em certas ocasiões é melhor que façam isso ao invés de outras coisas, como forma de passarmos a primeira lição aos recém-chegados...