⁠O Quadrado da Cidade Velha - ou uma... Andre Rodrigues Costa...

⁠O Quadrado da Cidade Velha - ou uma metáfora do que seria o i-mundo em que vivemos.
(por Andre R. Costa Oliveira)
Fica lá no centro da cidade velha, você vê logo de longe. Siga bem em frente. Não tem erro para chegar a pé ou dirigindo em linha reta.
Conjunto habitacional gigantesco, formado por quatro prédios enormes. 22 andares cada, que se fecham em hermético quadrado.
Sem elevadores e com escadas precárias; das que não alcançam o paraíso; das que fazem com que não acreditemos que houve jamais um paraíso.
As janelas só existem para dentro do quadrado. E por qual motivo as teríamos para fora? O que se veria do lado de fora? Qual seria a graça de olhar o que talvez exista do lado de fora? E por isso mesmo a parte externa se limita aos quatro muros de concreto. Inexpugnáveis e intransponíveis. Tá de bom tamanho desse jeito.
Bem no centro há um pátio gigantesco. Não tem árvores, nem quadra esportiva. Tem cimento velho, já escuro, com enormes fungos que exalam cheiro de esgoto. Só que não existe esgoto. Mas existe o sol de vez em quando, que transforma aquilo tudo em uma estufa claustrofóbica. E também a chuva, que encharca e faz do pátio uma piscina do que há de asqueroso e de infame nesse mundo.
Moradores são doentes, pestilentos. Há quem os alcunhe de degenerados. Ou então são todos eles gente de menor estirpe, vagabunda, depravada, pervertida. Gente pobre, gente feia. Não se sabe se têm lepra, não se sabe se as feridas enormes que explodem tal como vulcões ativos em seus corpos são metástases de cânceres diversos; escaras abertas, pútridas e purulentas. Eu não sei se sentem dor ou se apenas exageram quando gritam em suposto desespero. Acho até que são interesseiros, mentecaptos e ardilosos. Sentem é porra nenhuma. Não lhes dê conversa. Querem nos encher o saco.
Dormem uns sobre os outros. As partes pudendas aparecem livremente, sujas e cobertas de furúnculos horrendos, que se esfregam e se cheiram em comichões inquietantes até que se tornem massa uniforme, esmagada em sangue e em pele gangrenada. Mas ainda assim se comem loucamente e gozam também loucamente.
Não existem dentes para que mastiguem a comida que lhes é oferecida pelos síndicos-administradores. Na verdade não existe a comida propriamente dita. Há alguma coisa estranha, pastosa e de cor esverdeada, que de certa forma os alimenta e mantém aquela gente toda ainda viva. Cada um pega o seu caneco, no meio do pátio, ao meio-dia. Acho desperdício de dinheiro, mas o fato é que precisam ser mantidos vivos. Para que os humilhemos e os amaldiçoemos. Para acharmos graça, rindo de suas existências débeis, simplórias e não menos ridículas.
O cigarro é liberado. Drogas - essas mais baratas - são até incentivadas. A cessão dos corpos incessantemente é dever de ofício. Supre a ociosidade e distrai a dores múltiplas em meio a lambidas e mordidas e aos hálitos de bocas podres, baforentas. Buracos abertos acima dos múltiplos pescoços, nos quais cabem de quase tudo. Bocas de quem mora no quadrado da cidade velha.
Lá não existe medo. Lá não existe lei, tampouco algum códex que deva ser seguido. Não se vê sentido em criar sinais, linguagens, cifras ou regulamentos. A “legislação” é baseada apenas em estar ali, suado e imundo, respirando até o dia em que pulmões e corações declarem falimento em definitivo. Nada ali precisa de preceitos ou de normas. Isso é conversa de acadêmico, almofadinha pernóstico.
Aos cadáveres, incineração imediata. Mas não antes de examinados amiúde. Afinal de contas, vísceras em condições razoáveis, uma coxa bem rotunda e as nádegas macias têm valores elevados na gastronomia tão exótica daquele quadrado. E há sempre tempo para mais uma trepada rápida naquele corpo frio, sem corrimento, ressecado pelo rigor mortis. Para isso tem o cuspe. Bem medido, bem ungido, escarrado com cuidado para que não haja desperdício.
Como eu já mencionei anteriormente, lá existem síndicos-administradores, que passeiam pelas dependências do quadrado, sempre muito bem vestidos, empunhando azorragues feitos sob medida, em cabos de ferro entalhado. Trem mais lindo de se ver.
Mas a principal tarefa de um síndico-administrador não se limita a chicotadas. São, de fato, muito divertidas, só que sujam ternos e sapatos. A função primordial é bem mais excitante: é dever maior do síndico-administrador fazer promessas aos seus “hóspedes ilustres” Promessas que serão jamais cumpridas, para o nosso êxtase e alegria!!! Promessas vazias sobre qualquer coisa, um medicamento, uma morte rápida, um canto confortável para descansar os corpos semi-decompostos, um pouco de água limpa. Nada me excita mais do que as caras frustradas diante de negativas rudes. Esse é o trabalho dos meus sonhos. E um dia estudarei e me transformarei em síndico-administrador do velho quadrado. O melhor e o mais afamado dentre os que por ali passaram!!!
Aos turistas mais interessados, eu informo desde já que lá tem estacionamento próprio, lanchonetes, pizzaria, comida japonesa, mini-shopping-center, lojas de souvenirs e passeios guiados, 100% interativos. Vale muito a pena ver aquela gente toda empilhada, tal qual o inferno de Dante, só que de verdade. Sinto emoção e vaidade quando falo de minha cidade. Mas não derramo lágrima. Coisa de viado velho.
Aliás, houve um único pequeno incidente há alguns anos, que não posso deixar de mencionar aos meus leitores: teve uma criança, chata e inconveniente como qualquer outra criança, que um dia perfurou um buraquinho no concreto do segundo bloco. A criança impertinente colocou a cabeça para fora e olhou com atenta curiosidade (sentimento inútil). A criança intrometida percebeu que a cidade de verdade era o próprio quadrado, e o que havia do lado de fora era apenas e tão-somente a utopia da prisão dos corpos e das almas dos humanos. Criança idiota!!! Como pode a cidade estar na parte de dentro do quadrado, e o cárcere real do lado de fora? Como é possível que aquele meu quadrado, orgulho maior de nosso município, seja o próprio município - ainda que metafórico? E que eu, do alto de minha prepotência, viva em um plano irreal, inexistente?
E assim cortamos línguas e gargantas das crianças todas, colocando fim a uma subversão perigosa, de efeitos imprevisíveis.