QUARENTENA IV Vá outono... Vá e não... Melânia Ludwig

QUARENTENA IV

Vá outono...
Vá e não me surpreenda com mais nada.
Você me despiu, desfolhando as minhas vestes domingueiras. Deixou meus versos inertes, sufocados em minha alma sem se manifestarem.
Craquelou minha pele e ouriçou meus cabelos.
Envelheci.
Mas não foi só isso.
Foi no seu tempo que eu perdi minha liberdade de ir e vir.
Perdi os carinhosos beijos e abraços dos meus familiares e amigos.
Ah, e o medo que você permitiu que entrasse na minha casa sem que eu tivesse pra onde correr?
Fui apresentada cara a cara com a morte e a possibilidade de ir embora com ela.
Encurralou-me nos meus cômodos desbotados que eu já planejava colorir.
Negou-me as tintas, escureceu meus dias e encurtou minhas noites com sonhos agitados.
Os encontros na pracinha, as caminhadas na avenida, o sorvete nas tardes de domingo, os raros passeios de mãos dadas ao shopping. Folguedos evaporados que sustentavam minha iminente velhice.
Tive que despojar-me de minhas inúmeras máscaras para vestir a máscara universal, que denuncia toda a minha fragilidade perante um vírus invisível.
Vá outono, mas antes devolva-me aquele meu sorriso esfuziante, nem que eu não possa estampá-lo agora, mas o terei guardado para quando tudo isso passar, quiçá na primavera, no verão, no out...?
Não! Atrevo-me a fazer-lhe uma advertência, não volte aqui novamente sem trazer uma solução.
Quero cantá-lo como sempre cantei no passado, com versos alegres e rimados.

melanialudwig - 19/06/2020