Vida é caminhar Obrigo-me a caminhar... Sumã Pedrosa
Vida é caminhar
Obrigo-me a caminhar logo na primeira hora da manhã. Mas, hoje, não quis caminhar no mesmo chão de antes. Mudei a direção. Ao mudar a direção, vi que os ares também mudaram. Tão bom mudar ares! Muda-se o chão, muda-se a paisagem. No caminho costumeiramente percorrido, a visão é de concreto. Sons de escapamento e buzina. O cheiro é ocre. Rostos sisudos e apressados marcham em passos largos. Mas a pista é ótima. Perfeita. Plana, larga, asfaltada, com aclives e declives muito sutis, quase imperceptíveis.
Hoje não. A distância da nova pista de caminhada é a mesma, mas o rumo tomado é outro. E essa pequena variação regou a semente da percepção. Hoje o dia tem todas as cores da caixa. O cheiro é um misto de verde suave e cor de rosa. E o que é incrível: há pouquíssimas pessoas; são os pássaros que criam o rumor da vereda. Os mais variados tipos de pássaros, os mais variados tipos de canto. São dois quilômetros de pensamentos leves, de atenção ao movimento do ar entrando pelas narinas, plenificando os pulmões, retirando de dentro o que não deve permanecer ali. Não há asfalto, a calçada é estreita, acentuados aclives e declives. O corpo sente bem o quanto é fácil percorrer as descidas e como são penosas as subidas, quanto esforço físico é despendido.
Deve ter sido um anjo a sussurrar-me enquanto eu dormia, orientando-me a alterar a rotina; solicitando-me que mudasse, a começar do lugar onde caminho diariamente. Decidir-me por realizar a mudança segredada ao meu ouvido sonolento, representou a tomada de posse do favor do conselho. O presente recebido foi lembrar que 'vida é caminhar'. E a caminhada verdadeira não é feita apenas de caminhos planos. A subida é difícil e exige esforço, a descida é rápida e fácil. Há que se prestar atenção ao ar respirado, àquilo que nos faz bem, ao que não está sendo salutar; há que se enxergar o belo. Ele, o belo, está aí ininterruptamente para colorir nossos dias; mas a atenção é exigida, pois, apesar de evidente, ele facilmente é ocultado pelo véu da rotina, impregnada de mecanicidades e apegos, que turva a nossa visão.