ESU PASSAGEIRO-PRIMEIRO O ônibus da... Fabrício Hundou

ESU PASSAGEIRO-PRIMEIRO

O ônibus da prefeitura é novo, tem ar condicionado, as janelas não abrem, tem câmera no teto, luzes fluorescentes, chão de chapa de alumínio-xadrez y é amarelo/branco. Parando na Estação Campo da Pólvora, somente a porta da frente se abre para os novos passageiros. Quem tinha de saltar, saltou antes desse ponto.

Alguns "tocs tocs" solicitam a abertura da porta traseira. O motorista não abre, talvez nem tenha escutado. As batidas continuam enquanto o ônibus permanece parado. Por fim, o motorista concede, a porta arreganha e sobe um homem negro-retinto, aproximadamente 1,83, cabelos crespos com traços de dreads, vestindo regata, short e blusa de frio amarrada na cintura, aparentemente embriagado, usando duas bengalas canadenses; tinha um coto de amputação no membro inferior esquerdo.

Com voz estridente, berrou às "senhoras & senhoras" que era poeta. Recitou dois poemas, caminhando com dificuldades ao longo do corredor do ônibus em movimento. Esbarrava num e outro, não pedia desculpa, seguia declamando sua poesia autoral. Na segunda, fez pausa e disse que qualquer moeda lhe serveria para um café. Ninguém estendeu mãos, nenhum barulho de moeda. Parecia um estorvo artístico. A minha mediocridade participava paralisadamente daquele sarau de performance da sobrevivência sem sequer pronunciar uma misericórdia. Uma moeda seria mais útil que minha opinião rimada ou uma compaixão com menos auto julgamento. Não fiz absolutamente a ele. O ignorava em meu corpo; o captava com os ouvidos.

Grande coisa...!

A última poesia era sobre tomates secos. Ele dizia que tomates secos eram como gosto de sangue, gosto de amores. Não necessariamente nessa ordem, mas a metáfora era sobre 'tomate/sangue/amor'. Eu ouvia tudo e traduzia vermelhadamente em imagens. Vermelho.

O ônibus foi parando, a porta se abriu para os passageiros saltarem y o poeta sem perna - que já estava nos fundos - finalizou o poema aproveitando o embalo de descida. Sequer esperou as moedas, tampouco esperou os aplausos, as sellfies e elogios.

Que bom, pois não houve.

Laroyá, Esú. Abre os caminhos para a vida passar!