Eu fiz café, deixei o bolo em cima da... Ricardo Ferraz
Eu fiz café, deixei o bolo em cima da mesa, mesmo sabendo que não toma café e nem gosta de bolo, mas sabe, eu queria mesmo é que soubesse que nada mudou, que a casa sempre foi a mesma. Não tirei nada de onde estava, até a sua caderneta ao lado do telefone do jeito que deixou está lá, no mesmo lugar, esperando você busca-la. Na verdade, tudo ainda tem seu cheiro, em tudo ainda há partículas de suas células vagando nas coisas; no controle remoto, na escova de cabelo, nos interruptores, na taça de vinho que você gostava de tomar suco mas preferia Coca Cola, Até sua escova de dentes ainda te espera, seca, limpa, nem o gosto da sua boca ficou nas hastes. Seu vestido de festa eu pus no sol pra tirar o cheiro de mofo, encontrei um fio castanho de seu cabelo grudado nas costas, o pus contra a luz, e pude ver que as pessoas se desfazem, se desmontam aos poucos, mas que o vazio que fica por dentro quando fazem falta é muito maior do que a perda de partes do corpo. Só queria mesmo que entrasse devagar, em silêncio, não dissesse nada, mas antes de ir, que me olhasse nos olhos e soubesse o quanto ainda se cabe dentro deles.
Ricardo F.