As Sete Aberrações VI - O Tempo... Vinicius Marciotto
As Sete Aberrações
VI - O Tempo
Enquanto penso no que me foi dito na noite anterior, vou até o banheiro, encho minhas mãos de água e molho meu rosto, encarando o espelho logo em seguida.
De minha narina esquerda, uma linha vermelha se estendia até meus lábios. Esfreguei com meu pulso e encarei o sangue que manchava minha pele.
"Por quê?" - Falei, em voz alta. De trás de mim, inesperadamente, recebi uma resposta:
"Será que é tarde demais?"
Me virei rapidamente. Encostado na outra parede, enquanto sentado no cesto de roupas, ele estava, ou melhor, eu estava. Olhei para o espelho mais uma vez e ambos aparecíamos no reflexo. Olhando para baixo, percebi que não estava mais no banheiro de meu apartamento. Não existia chão, meus pés se sustentavam nas solas dos pés de outro reflexo meu, que me encarou da mesma forma que o encarei. Acima de mim, na imensidão branca onde deveria estar o teto, mais três reflexos perambulavam, sem parecer me notar ali, ou sequer, viam uns aos outros.
"Somos muitos, não?" Disse aquele que foi o primeiro a aparecer, e que ainda mantinha-se à minha frente.
"Mas você é diferente. Diga, você é outro? A sexta aberração?"
Aquele "eu" andou em minha direção com um olhar sereno, encarou-me e então, limpou meu sangue com um lenço que tirou de seu bolso, lenço esse, que eu mesmo ganhara de meu pai anos atrás. O mesmo lenço estava também em meu bolso.
"Todos somos, fomos, poderíamos ter sido ou seremos versões de você, em momentos do passado, presente ou futuro. Eu, sou a sua versão de um futuro bem próximo"
"Por isso é você quem me responde?" Perguntei. Ele me respondeu confirmando, com um aceno de cabeça e um sorriso de canto de boca.
Depois de pouco tempo, estávamos sentados, olhando para cada versão de nós mesmos. Ao redor deles, memórias do passado se formavam.
Apontava, animado, para cada uma delas, contando sobre os momentos felizes como se meu outro eu não os conhecesse. Nas memórias, vi pessoas que já se foram, como meus avós, alguns tios e primos. Isso me fez transbordar algumas lágrimas, secadas pelo meu outro eu, que tentando fazer me distrair, apontou na direção das memórias mais engraçadas de minha infância. Logo me reanimei, assisti tudo o que podia e não podia me lembrar.
Olhando um pouco à minha direita, vi algumas versões de mim que não reconhecia. Antes de eu sequer questionar, fui respondido:
"Ah, todos esses são versões de você que não chegaram a existir, graças às escolhas que fez".
Alguns momentos tristes, outros felizes, que gostaria de ter vivido, sonhos que não pude realizar em lugares que não pude ir, mas nenhuma parecia tão relevante quanto aqueles que há muito haviam partido, e agora, pareciam estar a um palmo de distância.
"Eu só queria poder dizê-los como sinto falta... De cada um deles". Estiquei minha mão em direção a eles, mas apesar de parecerem tão próximos, estavam longe demais.
"Impressionante" - Disse meu reflexo, enquanto me encarava surpreso "Mesmo com todas essas possibilidades lhe sendo mostradas, ainda insiste em olhar para os momentos do passado".
"Bom..." Respondi. "Cada uma dessas versões poderiam ter acontecido, mas não aconteceram. Sendo assim, elas não fazem parte de mim, não são eu, não me são tão valiosas."
"Você prefere suas memórias, mesmo as dores que passou, mesmo os momentos ruins, as perdas, todas elas fazem parte da sua vida"
Apenas concordei com um aceno de cabeça.
"Estou sem palavras, posso apenas parabenizá-lo" Nesse momento ouvi um barulho de estática, senti uma pontada no peito, depois todo aquele local pareceu tremer. As pessoas que vi simplesmente sumiram.
Coloquei minha mão no peito, me controlei e olhei para ele de novo.
"Para onde eles foram? Isso foi uma provação ou algo assim? Qual é a lição que deveria ter aprendido com isso tudo?"
Ele me olhou mais uma vez, com um olhar triste, ainda que sorridente.
"Acho que... Quem acabou recebendo uma lição fui eu. Esperava que visse todas aquelas possibilidades e se sentisse tentado em poder viver de forma diferente. Ainda assim, você preferiu a vida que teve" - Mais uma vez, a dor no meu peito e o barulho de estática se fizeram presentes.
"Eu não entendo" respondi
"Não percebe? Você conseguiu aprender conosco! Com cada uma das aberrações! Entende cada erro que cometeu, mas ainda assim, sabe que seus erros são parte de quem você é, ou melhor, de quem somos! A perfeição vem daquilo que é, não do que poderia ser. Você,
pequeno iluminado, pôde me dar uma provação e eu sequer passei, eu devo ser sua versão que fracassou nesse teste." Sua última frase saiu em um tom de ironia.
Meu coração apertou mais forte dessa vez, junto com outro barulho de estática, fazendo com que eu quase desmaiasse. O clarão ao redor começou a se raxar e mostrar o negro atrás daquela lona de luz. Pensei em perguntá-lo se ele de fato, era a sexta aberração, mas, rapidamente, a resposta a essa pergunta se tornou clara: já havia admitido, eu mesmo, ser uma aberração.
"Eu não me arrependo de nada, e também, não é como se fosse uma desistência banal, mas, queria ficar com eles! Deixe-me ir de uma vez, eu sei que estou pronto!" Disse finalmente.
"Não se preocupe, logo você estará com todos" - respondeu. A face começou a se raxar, revelando raios brancos e negros através da carcaça feita à minha imagem e semelhança - "Mas ao menos mais uma vez, você deve acordar" - um último som de estática me atingiu, fazendo-me fechar os olhos - "Ainda há aqueles que precisam de você do outro lado". Comecei a ouvir vozes desesperadas e gritantes ao meu redor, eles pareciam pedir espaço, ordens para que outras pessoas se afastassem, em um desespero que não me parecia fazer sentido.
Abri meus olhos a ofegar, quando vislumbrei tudo que estava ao meu redor. Estava deitado e amarrado a uma maca. Uma mulher e dois homens de jalecos brancos e máscaras que cobriam suas bocas e narinas, me encaravam, secavam minha testa com esparadrapos e me pediam para me acalmar, que já havia passado. Diziam eles, que apenas quatro choques do desfibrilador foram o suficiente, para que eu recobrasse a consciência.