As Sete Aberrações II - O Espelho... Vinicius Marciotto

As Sete Aberrações

II - O Espelho


"Não é tão ruim assim" - Pensei, engolindo seco.

Enquanto a saliva descia feito serragem em minha garganta, ele desceu, envolto de luzes brancas e azuis, finalmente pousando às pontas dos pés, no mesmo lugar em que se sentava a criatura anterior.

Apesar do par de chifres no topo de sua cabeça, sobressaindo discretamente por entre os cabelos louros, o par de asas às suas costas, revestidas de plumas brancas e douradas, tornavam a imagem do jovem garoto de olhos azuis, um tanto quanto angelical. Meus olhos lacrimejaram neste momento, de forma diferente da noite passada, graças ao alívio que o atual devaneio me proporcionava.

Antes de encarar-me, questionou aquilo que ainda sequer tinha visto:

"Por que choras, jovem humano?" - Pude ver que a criatura trazia consigo, um espelho em sua mão direita.

Secando as lágrimas, vislumbrei a iluminada figura à minha frente, tentando me explicar, logo em seguida

"Ontem me foi dito, que abandonavam-me os anjos, mas tua bela imagem me alivia"

Sem esboçar qualquer expressão, o tal anjo sentou-se, direcionando-me outro questionamento:

"Te alivias minha presença? Sabes o que sou?"

Um silêncio profundo toma conta do lugar, enquanto nos encaramos.

"Tu decepcionas mais do que esperava" - Lamentou

"Você é um deles. Uma das aberrações".

A criatura me encarou, enquanto a calmaria se esvaía lentamente, dando espaço para uma angústia ainda controlada pela minha prece, repetida incessantemente em minha cabeça: É só um sonho.

"Pois" - chamou minha atenção - "consideras-te belo?" - Ergueu o espelho que trazia consigo, voltado a mim. Nele, não vi meu reflexo, mas sim, memórias.

Memórias específicas, de momentos em que fui diminuído por minha aparência, minhas diferenças, minhas próprias aberrações. Chorei ao revisitar aqueles momentos, através daquele espelho aparentemente mágico. Mais uma vez, o anjo questionou:

"Consideras-te belo, jovem?"

Finalmente respondi, com a voz alterada graças à angústia:

"Não..."

"E mais uma vez, tu decepcionas" - retrucou, quase imediatamente e então, continuou - "Tudo que vistes, são julgamentos banais. Julgamentos carnais de seres carnais, a ti voltados, graças aos quais, não reconheceste tua beleza e torna-te a ti mesmo um juiz, como os tais que lhe afligiram. Entenda, criança, sois estrela cadente em céu estrelado: bela, rara, iluminada, mas ainda, passageira. Sua luz se esvai, assim como sua carne se deteriora. A estrela simplesmente desaparece, tal como sua vida se acaba e, tudo o que sobra é a verdadeira beleza, teu legado, tua essência, o espaço vazio entre as estrelas do firmamento, que agora brilharão mais fortemente".

Pude ver as plumas da aberração soltando-se atrás do espelho e encobrindo o ar de todo o local com seus brilhos.

"Diga-me, jovem... Ainda sou belo?" - perguntou, com uma voz, agora, mais grave.

As asas emplumadas haviam dado lugar a outras, revestidas de uma pele negra, como a mais escura das noites. Seus chifres se estenderam para o alto, se destacando ainda mais dos cabelos que, outrora loiros, tornaram-se tão negros quanto as asas e alongaram-se até cobrirem os olhos, que abandonaram o azul celeste e se dilataram em um mar, vermelho, forte como sangue. Sua boca estampava um sorriso bestial, com presas vampíricas, enquanto esperava pela minha reação.

Encarei-o, curiosamente, sem medo qualquer e então, tomei a palavra:

"Provas tua beleza, quando ensinas outros a vê-la. De todos que já vi, tu, és o mais belo ser que meu coração já vislumbrou".

O anjo espantou-se, depois, sorriu novamente, ao ouvir o som de quatro badalares. O sorriso, desta vez, deixara de ser irônico, demonstrava satisfação.

"Sabia que podia esperar ótimos resultados de ti. Jovem, passaste por minha provação com êxito".

Despediu-se, assim, a criatura, quando mais uma vez, abri meus olhos, deitado em minha cama, chorando de emoção com a lição recebida, enquanto preparando-me psicologicamente para a próxima aberração que, como as anteriores, poderia vir disfarçada de terror, e provida de outra provação.

(Às vezes, existem cordeiros feridos, por detrás das peles de lobo que lhes colocaram)