Cap. I A imagem de si reflectida num... Raquel Ribau
Cap. I
A imagem de si reflectida num espelho desvanecia toda a luz daquele lugar… Três camadas de rímel bem assentes nas pestanas, e um batom que causava febre nas veias, eram assinatura sua.
Ali estava ela, perdida numa segurança fabricada por uma máscara que teimava esconder apenas uma timidez e insegurança de uma criança adulta dentro de si. Assim era Camila, como um malmequer selvagem arrancado da pradaria e levado para uma qualquer jarra de cristal de uma casa citadina….
A essência estava lá, no coração, em cada respirar, mas a circo da vida a forçara a ser uma flor de plástico na lapela de um palhaço triste. A inércia da sua postura interior facultava-lhe um embalsamamento desconcertante que só aos olhos dos mais humanos era perceptível…
Mas Camila assim vivia os seus dias…
Pela manhã sentava-se à mesa e engolia mecanicamente uma laranja suculenta que mal conseguia saciar a sede de uma alma desidratada. Entrava na banheira, e com um sabonete de lavanda, tentava dissimular a sujidade que sentia carregar na pele, da mente dos olhares pervertidos de que era alvo, assim que punha o pé na rua.
Saía de casa sempre vestida de preto, com a classe de um esboço de Yves Saint Laurent, assim caminhava ela, num passo firme mas frágil do alto de uma sola vermelho escarlate. Sim, Louboutin, Camila calçava Louboutin… Uns sapatos stiletto deixados pela sua mãe, a única recordação material que teria restado de um vasto império a si roubado.
Camila nascera numa quinta do Alto Douro, a sua família teria sido uma das mais influentes e marcantes na edificação dos socalcos de uvas Tinta Cão (uma das mais antigas castas utilizadas na produção do Vinho do Porto).
Filha única, Camila desde pequena fora dotada de uma astúcia fora do normal. De um génio desassossegado, corria desenfreada pelos caminhos sinuosos da quinta, sempre com os vestidos de Renda Duquesa* que teimavam roçar nas folhas das parreiras que cresciam entre grades de vime.
Aos 6 anos ficara estarrecida com ´Les Misèrables de Vitor Hugo, aos 8 era já dona de um palato aguçado que compreendia a musicalidade dos vinhos que nasciam na sua casa. As 18 primaveras trouxeram-lhe o infortúnio da palavra órfã, e todo o peso que esta mesma palavra carrega em si…
O pai de Camila chamava-se João d’Alma dos Santos....
Cap II
Era uma manhã de outono. Um sol morno passava entre os ramos das árvores que balançavam ao som do vento que parecia beijar cada uma das folhas. Camila tomava o pequeno almoço na sala principal com os seus pais. Os raios de sol furavam os vidros das janelas e refletiam como estrelas nas pratas em cima da lareira. Um perfume delicioso fazia-se passear pela casa numa mistura de café fresco e bolo acabado de fazer... O conforto daquela casa e o ambiente que ali se vivia faziam dela como que um paraíso na terra, tudo naquela casa respirava amor e serenidade.
O som que se fazia ouvir nessa manhã de sábado era o mesmo de todos os dias, as gargalhadas de Camila, os reparos galanteadores do seu pai à sua mãe, as indicações matinais da mãe de Camila ao pessoal da casa. Tudo parecia normal, perfeito como habitualmente...
Como tudo aquilo que é normal... Assustadoramente normal...
Camila acaba de engolir o bolo de laranja como criança sôfrega que era, para ir correr e bailar com o sol vibrante que guarnecia as paredes e os vidros da sua casa.
Desce as escadas e sai pela porta que dá para o terraço sombrio e escuro das traseiras da Quinta d’Alma dos Santos... O perdigueiro malhado ladra para brincar com Camila...
(Nesta casa nenhum animal é cativo... Aqui se respira identidade, livre arbítrio e liberdade...)
Camila põe um pé em falso num degrau vestido de musgo verdejante. Escorrega, bate com a cabeça e entra num sonho inerte, vazio, onde a ausência de luz impera....
Num coma profundo foi levada para um hospital eclesiástico (mais um convento do que um lugar que prestava cuidados dotados de ciência...)
Cap III
Moveram-se as pálpebras num reflexo nervoso, a luz branca e fria invadiu os olhos de Camila por entre as pestanas coladas de fluido humano seco e duro. Lentamente abriram-se os olhos e deixaram a nu um azul céu por entre um vácuo negro e profundo.
Camila acordara do coma, e num medo transformado em vazio gélido, reconheceu que voltara à vida, num respirar lento e quase mórbido tentou arrancar as agulhas gritando num silencio ensurdecedor, para que aquele momento fosse apenas o acordar de um pesadelo sem memórias.
Uma bata branca surge ao bater de uma porta e ouvira uma voz como se de um anjo se tratasse: “Calma, está tudo bem Camila... Respire calmamente, você não está sozinha...”
Nesse momento Camila foi como se sentisse os seus pés no chão e ali, toda a realidade voltou a ser cruelmente verdadeira e as dores da alma voltaram para lhe dizer “bom dia”.
-Não quero estar aqui, quero voltar para aquele sono incapaz de me fazer sentir coisa alguma, a realidade é algo que não consigo aceitar, levem-me daqui, deste chão frio e cruel, tirem-me os sentidos e façam-me ser nada...
Camila num pânico desconcertante pedia insistentemente para que a inércia e o vazio invadissem o seu corpo e a sua alma. Viver para si já não fazia sentido, era uma dor, um castigo...
Cada batimento do seu coração era energia cinética que palpitava em dor atroz no seu peito. Cada movimento do diafragma era como um trampolim manhoso que teimava em fazer do respirar uma piada.
As células de cada pedaço de si moviam-se em direção à natureza viva, mas a alma dessas mesmas células ridicularizavam o esforço energético que a natureza investia sem cessar.
Neste breve instante cronometrado em dois minutos passou uma eternidade infindável... Aquele momento de pânico e de desistência da sua própria vida foi prolongado em folhas de papel que escrevera para sempre. Enfrentando a dura realidade não teve outro remédio se não reagir e ter de seguir enfrente, por dentro morta, por fora um corpo vívido e contrariado.
Tomou um banho quente com a ajuda da enfermeira. Alguém trouxera uma mala de viagem com uma muda de roupa que cheirava a alecrim e mel.
Ao colocar o seu corpo quente e pálido num vestido preto com botões de rosa, Camila sentira uma sinopse da sua infância, e várias memórias retornaram ao seu espírito... Uma lágrima densa e pesada escorrera pelo seu rosto, deixando um rastro de cristais de sal...
Os cabelos emaranhados escondiam uns lábios desidratados, os ombros eram rijos como pedras, mas aquele aroma de jasmim e mel enternecia a sua alma como um abraço de mãe.
Nesse momento Camila ganhou a coragem de um leão e enfrentou o mundo. Abriu a porta que dava para a rua e meteu o seu pé direito em primeiro lugar, pisando um degrau de granito meio torto e falso, desceu a escada e lembrou-se que trazia uma espada em forma de força