Sinistro Amar... Lembro da camisa clara,... Múcio Bruck
Sinistro Amar...
Lembro da camisa clara, já lavada
Com um pequeno detalhe na gola:
Um furo, resultado da travessia de uma bala
Um tiro dado à queima roupa, ferindo meu irmão
Trago na memória que, mesmo muito criança
Deixei de ado os brinquedos, brincadeiras, a alegria
E a ele me dediquei: servi-lhe água, atenção e amor
Fiquei a seu lado, escondi lágrimas e rezei cada dia
Guardo na lembrança corpo já quase sem vida
Fruto do engasgo com uma uva, da pequena menina
E retirei a uva e a vida voltou-lhe a pulsar livremente
Minha ação caiu no esquecimento, sem agradecimento
Flui em mim, desejos de bem, de saber ouvir
De observar, ajudar, me doar, plantar o bem
Perdi as contas das noites que varei insone
No CTI, vendo uma bebezinha vencer a morte
Atravessei anos ajudando o sono chegar
Nas noites de um irmão de vida sofrida
Pela ausência da compreensão, do afeto
Condenado à solidão emocional em seu lar
E assim, presente em consultas e cirurgias
De irmãos, sobrinhos, cunhados e amigos
A recompensa se me desnudou nos anos vindos:
A vida se esvai, em fome, abandono, sinistro amar