IRONIA CRIATIVA Hoje a Paulinha... Nivea Almeida

IRONIA CRIATIVA

Hoje a Paulinha amanheceu “louca varrida” e implorou para eu falar dela aqui.

Paulinha é o nome de batismo para uma voz que fala com certa freqüência no meu ouvido direito, desde a minha infância. Ela é extremamente inconveniente. A sua voz esganiçada aparece como se estivesse lendo um texto escrito, chego a perceber as pausas das vírgulas e as ênfases nas partes mais importantes. A dita cuja não existe, mas, do nada, começa a “ler os textos” enquanto eu estou no chuveiro, dirigindo, tentando dormir, assistindo alguma série... No meio de reuniões importantes do trabalho ou quando, na sala de aula, dou um tempo para os alunos fazerem alguma atividade. Na verdade, a maluca lê textos AINDA NÃO ESCRITOS, e aí está a questão. ELA LÊ PARA QUE EU ESCREVA! O meu processo criativo é assim descrito.

A Paulinha tem um apetite fora do comum e gosto bem peculiar. Vive faminta! A mocinha é alimentada por cores de flores, cheiro de chão molhado pela chuva, pelo abrir dos olhos depois de um saboroso beijo de amor... Pelo sorriso da minha filha, por um momento de chateação, um longo gole de um bom vinho, uma nova paisagem durante uma viagem, pelo gosto forte de um café, pela minha TPM... E por tudo o que gere alguma forte emoção.

Mesmo bem alimentada, a moleca às vezes some por dias, semanas... E ela é bem desobediente, nunca vem quando eu preciso ou chamo (ou quando estou participando de algum concurso de contos ou tenho algum texto encomendado, por exemplo).

Minha memória é terrível, fato, então para transcrever o que ela dita, tenho sempre à mão o gravador do celular, um papel para anotação, um bloco de notas... Já documentei as leituras dela em guardanapos no meio de uma DR ou já interrompi conversas importantes para registrá-las, pois a garota já tinha “me feito o favor” de me desconectar dali, depois de tanta tagarelice. Posso recordar que, na adolescência, eu escrevia ditados da monstra usando batom em espelhos de banheiros alheios, e poemas inteiros nas camisas dos colegas, em final de período letivo.

Essa fantasma surge frequentemente no meio da madrugada, entre um pestanejo e outro (a diaba é, sem sombra de dúvidas, um dos grandes motivos das minhas noites de insônia). O problema é que, escrava dessas leituras da garota, se eu não anotar... A “coisa toda” some em um piscar de olhos, evaporando no ar... Para nunca mais. São leituras textuais individuais, únicas, exclusivas e que não permitem replay.

Será um dom? Um cárcere? Um delírio? Insanidade? Um mistério ou feitiço? Acho que se resume na verdade em uma grande ironia criativa.

Obs.: A Paulinha nesse momento está aqui se revirando em gargalhadas. Ela já estava cansada de só observar eu levando o mérito e recebendo elogios, sendo que a grande artista na verdade é ela.