Não é à toa que eu vim até aqui.... Aline Diedrich
Não é à toa que eu vim até aqui. Venci todos os obstáculos do caminho. Bati na sua porta como quem não quer nada e com o meu sorriso imbecil e singular estampado na cara. Olhei para essa sua expressão de bobo, esses seus olhos perturbados e admirei a sua vontade de falar o que guarda no peito - e até umas velhas conhecidas malícias -, como quem se fascina com uma obra de arte. Apenas o empurrei para dentro da casa que, por si só, já é o seu caos, e ri. Eu vim para falar.
Não do plural. Não das coisas que fizemos outro dia. Nem de quando o vi pela primeira vez distribuindo clichês e se mostrando em danças estúpidas. Não de nós dois. Sou excêntrica por natureza, você me conhece. Tão bem e tão irracional que parece querer ser uma parte de mim.
Saiba, porém, que não tenho desenhado em minha mente as ilusões. Mas constantemente transformo a carga pesada que é a realidade em duas situações mais fáceis de levar. A primeira, amor, é garra e gana por lutar. A segunda, é saber reconhecer todas as belezas que existem por trás do concreto dos prédios e dos sons que essa gente costuma propagar.
Aqui, escancarada entre as paredes mal pintadas do seu lar, eu não tenho perguntas. Estou farta de todas elas com as respostas primitivas. Eu trouxe a mim mesma, apenas. Com os meus pensamentos embriagados, minha boca seca e a respiração ofegante. Trouxe a sujeira da rua, o resquício da tempestade lá de fora e do temporal que costumo fazer aqui dentro. Trouxe a minha loucura, mas abandonei os fantasmas, os fragmentos do passado que parecem com as tralhas obsoletas que querem enfeitar a sua sala. E, trouxe a admirável e eterna baderna que é a minha alma. Assim, admito, veio junto toda a desorganização, porque não suporto esses seus discos e livros guardados por formatos e cores elevando mais uma das suas manias.
É, amor, eu trouxe a certeza de que não quero mais tempos cinzentos. Feche a porta, portanto, e deixe a chuva lavar e o vento arrastar o que não nos serve mais.