Traído e traidor Afinal de contas,... Tais Martins

Traído e traidor Afinal de contas, pensava ele, aquele coração, tão volúvel e estouvado, não devia ser meu; a traição mais tarde seria mais funesta. Machado de ... Frase de Tais Martins.

Traído e traidor

Afinal de contas, pensava ele, aquele coração, tão volúvel e estouvado, não devia ser meu; a traição mais tarde seria mais funesta. Machado de Assis.

A busca das emoções traz consigo algumas armadilhas traiçoeiras. Um dia conhecemos um príncipe encantado. Charmoso. Bonito e pleno de uma verborragia capaz de ludibriar o mais treinado dos corações. Entregues à solidão - que como um corvo sorrateiro nos espreita. Acabamos envoltos numa cama solitária ou nos deitamos com o ardiloso inimigo.
Embebidos nas névoas de um enlace. Cintilamos sorrisos e alegrias que imaginamos reais. Fotografamos os momentos e revivemos as emoções dos pequenos prazeres. Revisitando os retratos na estante, no celular e no computador. A felicidade precisa de um estandarte pomposo e de uma casa arrumada. Uma visita que é desejada ansiosamente em todos os momentos da vida.
No entanto esse sabor magnífico não pertence à eternidade. Repentinamente o céu azul toma contorno de tempestade. Revisamos as palavras românticas convertidas em ironias e ofensas inimagináveis. Somos dilacerados pela nossa confiança refutada. A plenitude de amor e esperança é espicaçada por um abismo que engole as almas sem socorro.
Digladiados pela realidade é hora de desmistificar os sonhos conjuntos. As paredes de mentira esmagam as meias verdades. A lucidez adentra a garganta e o sussurro do afeto cede aos gritos da dor. Uma alucinação pérfida que converte o mais tranquilo dos animais numa fera voraz. A identidade de quem oferta sinceridade resta transmutada numa tolice digna de nota.
Equivocados pelo algoz as pessoas passam administrar as culpas. Agregam na memória turva as imposições mesquinhas. Uma conversa ao celular se torna uma traição irremediável. A discussão se perfaz para acobertar os desmandos daquele que engana sobre o frágil enganado. Horas de debate infértil sobre responsabilidades inexistentes e quando exauridas as hipóteses falaciosas o traidor pede desculpas convincentes.
O coração e a alma ficam habilitados na ocultação de amores e ódios. A vida não permite asilo dos fantasmas particulares. A amargura surge nos olhos. O temor brota nas atitudes. A vergonha burila os comportamentos. Os danos da traição se alastram no sangue, na fé e nos sonhos – agora convertidos em pesadelos. Cicatrizem que mitigam a fé não se pagam no correr dos tempos. Ficam incrustadas como prova de aprendizado.
A herança da perfídia assola a confiança e agride o espelho. A imagem real não corresponde ao reflexo. Condenado pelos olhos e submisso aos pensamentos. O corpo agoniza a dor infeliz que precisa manter a serenidade. Tudo nos olhos é vago e oco é como uma flor murta que aguarda o sol do estio, mas a impossibilidade da fé recai nas pétalas emocionais como uma tempestade de granizo.
A aura da felicidade é dispersada. Há um desconforto nas veias onde o sangue fervilha entre as memórias. As imagens passam diante do espelho e dos olhos. A elegância comentada entre os amigos. A gentileza destinada aos familiares. O carinho construído para as fotos e eventos sociais não passava de um engodo. No intuito de amealhar novas vítimas e oportunidades de um prestígio que nunca seria alcançado.
Na última manhã ainda privada da lucidez houve a preparação do café. A angústia das perguntas sem respostas. O silêncio que revelava um abismo de mentiras. Quem poderia imaginar o desfecho cruel daquela cena. Onde o agressor quer ser a vítima e sacrifica a história do outro para o seu deleite e para compensar os seus fracassos. Como Lúcifer que condenava os demais anjos para conquistar sozinho o paraíso...
O desejo primitivo de manter e propugnar a mentira culmina pelo transbordamento das histórias veladas. Das construções absurdas que levam uma pessoa honesta e digna a ser pintada como um demônio. Numa ideia de autoflagelação a vítima pensa que é o algoz numa confusão de informações sem lucidez. Todas as vantagens recaem nos dedos do traidor que humilha, ameaça e agride covardemente o traído.
Distante dos livros não há beleza em sentir solidão. Não há poesia no abandono. E tampouco prazer nesse aprendizado. Perder a confiança nas pessoas acolhidas com afeto é doloroso – há um confronto das convicções e da inteligência. Perceber os contorcionismos das verdades programadas meticulosamente elaboradas para promover um bem estar passageiro que derruba dos sonhos num pesadelo de lucidez sem escalas...
Nas sábias falas de Nelson Rodrigues: “Só o inimigo não trai nunca”. Contudo o caráter da alma do traído não está preparado para essa armadilha mortal. Esquecer a fisionomia, apagar as feições das promessas de eternidade. Revirar as sobras das emoções notando paulatinamente que as fantasias não passavam de ardis naquela figura ordinária. A descoberta se propala nos dias. Nos papéis esquecidos e nas revelações tardias.
A hesitação passa a ocupar os espaços. Todas as emoções precisam ser exauridas, pois é desconfortável e impossível manter a vida naquilo que está impregnado de morte. O patrimônio dilapidado não retorna. A atmosfera dos pensamentos é cada vez mais rarefeita. A vítima resta sufocada em seus temores presentes, passados e futuros. O algoz por sua vez transita livre e faz da desolação do traído a sua diversão permanente.