Ora vejam só! Deixa eu me organizar,... Arcise Câmara
Ora vejam só!
Deixa eu me organizar, organizar os pensamentos, organizar o coração, espantar a dor, é difícil viver sem seu pai sorridente, é difícil viver sem um pai que teve colhões para ser firme e enfrentar a educação com maestria.
O tempo passa e as pessoas esquecem, mas eu jamais esquecerei de ti, jamais esquecerei das joias que me dava todo dia com as suas conversas fiadas, com os ensinamentos de que eu deveria ceder, você me dizia que eu pisava no calo de muita gente com meu jeito espontâneo e que eu tinha muito charme e carisma.
Quantas discussões salutares tivemos sobre grupo evangélico que protestam contra pesquisas de células tronco, sobre o meu jeito de andar tão parecido com o da minha mãe, que a gente não trabalha só por questões financeiras, que a família não se resume a filhos, que a aparência não é o mais importante, mas que eu deveria emagrecer para ter mais saúde.
Choro sem parar e não me conformo. Por que tudo que é bom dura tão pouco, por que minha vida comum se transformou num inferno, por que é importante se fingir de forte quando as coisas começam a piorar. Não sei manter as aparências, não consigo ser generosa quando estou com a dor a ponto de explodir, perdi a confiança no caminho, não queria enfrentar o que estava por vir.
Não me senti bem pelo resto do dia, não me senti bem por semanas, meses, anos, não há alternativas lógicas para curar a dor da perda, é preciso enfrentar esse momento com coragem, abreviar a história que poderia ser mais longa, entender o meu lugar nesse mundo sem perder a fé, sem ofender ou pisotear em solo sagrado.
Tem mil coisas que eu deveria ter feito e não fiz, mil palavras que poderia ter sido ditas e não foram, mil abraços apertados e beijos contados. Pai afasta de mim esse cálice era a frase que eu repetia mentalmente todas às vezes que eu estive no fundo do poço.
Depois da perda nada ficou sob controle. Opa, foi mal, desculpa ser tão fraca aos seus olhos, não sou de me gabar por nada mas teria ganho o Oscar de sofredora do século, uma experiência de vazio sem sucesso de preenchimento. O meu coração se despedaçou em infinitas partículas invisíveis
Perder alguém que se ama é como sempre olhar para o passado, para as lembranças, ao longo desses anos eu não me acostumei, você era tão firme, enfrentava com forças qualquer situação, eu repasso aquela noite na minha cabeça todo santo dia, perdi a mania de ser feliz sem a sua companhia.
Por vezes preferia não contrariá-lo porque a sua cabeça era tão dura quanto a minha, eu nunca estive preparada e sempre estive paranoica com a possibilidade de te perder, eu já tinha sido alertada da possibilidade, mas a gente acredita até o fim, acredita em cura, em milagres, em força de vontade, em medicina alternativa e em Deus.
Ele sempre foi desprovido de preconceitos, conheci suas verdades, seus fracassos, suas decisões e aguentei as consequências de algumas delas, era um artista na arte de falar, não era tão paciente, mas tinha sutilezas.
Não dou nenhum passo em falso sem acompanhamento de uns calmantes, estou correndo riscos de adoecer, minhas feridas estão abertas e longe de serem cicatrizadas. Deixa estar, tudo vai passar, menos essa saudade infinita.
Fui direto para o quarto dormir, tentar dormir, fazer um ensaio geral do sono profundo, aquele que você deseja dormir para não acordar nunca mais, ou melhor ainda, aquele que você pretende acordar acreditando que tudo aquilo era apenas um pesadelo.
Ninguém suporta o menor sofrimento provocado pelos outros, somos por vezes intolerantes e grosseiros, usamos o nosso sorrisinho de praxe para os pontos fracos dos outros e nem sempre exaltamos suas qualidades, às vezes no máximo sorrindo de orelha a orelha. Tento me recompor, despistar a dor de alguém é relativamente fácil, mas quando a dor é nossa, quando a separação é nossa, fica tudo incompatível.
Prefiro sempre estar na companhia de alguém, tenho todo o tempo do mundo a perder, desisti de projetos dos quais ele não se orgulharia, fazia movimentos bruscos na cama a fim de afastar o pesadelo. Já não me importava com absolutamente nada, porém todo mundo me dizia: isso-vai-passar.