Diálogo de Shakespeare e Miguel de... Jaime Ciment

Diálogo de Shakespeare e Miguel de Cervantes:

Tinham dito que Shakespeare e Cervantes haviam falecido na mesma data (23 de abril de 1616), depois foram ver que não era bem assim, mas acabou ficando mais ou menos assim e estamos comemorando os 400 anos da morte de cada ou os 800 do passamento dos dois. Esse negócio de datas, no fundo, não tem muita importância, mas acaba tendo e precisamos de uns marcos para não desmarcar muito a memória e como pretexto para homenagens, comemorações, bebemorações etc.

Consta que Shakespeare e Cervantes se encontraram dia desses lá por cima e rolou uma conversa:

- E aí, Bardo, somando nossos aniversários de falecimento dá 800 anos, que tal?
- Pois é, mas estamos bem, não é? Nunca imaginei tanta imortalidade.
- Nem eu. Imagina, dizem que o Dom Quixote, que muitos chamam de "a bíblia da loucura", é o romance mais importante de todos.
- Não posso me queixar também, Miguelão. Minhas 38 peças e meus sonetos andam por aí, na boca do povo, nos palcos e nas universidades. O julgamento do tempo e dos leitores é o mais importante. No fundo, Miguel, a vida é uma simples sombra que passa. É uma história contada por um idiota cheia de ruído e de furor e que nada significa.
- Bah, profundo. Mas prefiro ficar pensando aí nuns sonhos impossíveis, numas batalhas. A vida é sonho; e os sonhos, sonhos são, como disse o outro. Que tu estás achando desse lance do Mercado Comum Europeu?
- Sei lá, ser ou não ser, eis a questão. Mas sempre disse que se você quiser ser, é melhor ser discreto. Complicado esse lance do MCE, nacionalismos, melhor pensar em dramas, ciúmes, amor, dinheiro, vinho, sexo e comida boa. Esse negócio de política e economia é complicado.
- É verdade. Falando em complicado, me mata uma curiosidade, desculpa te perguntar, mas esse negócio que não foi tu que escreveu a tua imensa obra, que foi o Francis Bacon, o Christopher Marlowe, o William Stanley ou o Edward de Vere, para não falar de uns outros? A galera anda falando na internet.
- Olha aí, Galego, deixa esse lance para lá, não te mete. Não vou terminar com esse mistério, que dá bastante Ibope. Tipo o mistério da Capitu do nosso colega Machado de Assis, brasileiro genial, que nunca revelou o segredo. Isso para não falar daqueles leros meio ininteligíveis e enigmáticos do danado do Joyce. Não insiste que não falo desse assunto nem sob tortura e nem na presença de meus 30 advogados. Adoro advogados.
- Tá bem, tá bem, William, foi mal, sorry. Vamos mudar de assunto, não vamos nos estressar. Quem sabe a gente fala de futebol. Que tu estás achando do futebol espanhol, hein? Vocês inventaram o futebol e a gente reinventou, não achas, brother?
- Acho que vocês têm que se cuidar com os vizinhos portugas, que estão batendo um bolão. Até a Torre Eiffel ficou verde e vermelha depois do jogo aquele. Argh, tenho que reconhecer que os franceses são elegantes, mesmo depois de derrotados.
- Mas olha, Bardo, quero te dar os parabéns. Não tem para ninguém. Se foi tu que escreveu tudo ou não, não importa, quero nem saber. Em literatura é sempre meio assim, um copia do outro, um vai emendando a história do outro. Alguns criam alguma coisa diferente, tá certo.
- É verdade, Miguelão. Parabéns para ti também. Nós dois, Camões, Dante, Goethe e mais o Machado, os russos e uns e outros somos o time principal. Mas esse negócio de número um ou dois, de cânone e tal, sou contra. Literatura não é corrida de cavalo, não tem o melhor, o maior. Nem nós dois.
- Concordo, colega. Não estou nem aí para essa imortalidade, que era melhor se tivessem me dado em vida. Fui.