Escrito numa tarde de inverno: Sou uma... Gabriela Wagner
Escrito numa tarde de inverno:
Sou uma poça d'água no fim de um escorrega. Esse escorrega é meu salvador e meu algoz. Ele é meu 'Phármacon'. Insuportável saber que ele tem a permissão de Deus para ser juiz da minha existência. De seu dorso deslizam águas que me alimentam, mas por quê, Senhor, muito mais do que elas deslizam pés que me dilaceram? Será que não existe um lugar menos agitado pruma poça como eu se alojar? Tenha piedade de mim, Senhor. Dizem por aí que não é pequena a Sua misericórdia. Se assim é, então será que Sua Majestade poderia, por favor, abrir Seus olhos para o que vivo aqui? Não aguento mais ter de suportar a alegria dos que no escorrega se divertem, inconscientes do impacto que seus prazeres têm sobre a alma d'água que eu sou. A cada pisada, Senhor, sou menos alma e mais lama. Até quando? Ah, Senhor, como eu gostaria! Eu gostaria, Deus, e Lhe rogo: junte Suas mãos e me recolha Nelas como se eu fosse a prece de uma filha querida, e em Suas mãos, Senhor, com amor, peço que me conduza ao topo deste às vezes bendito, outras vezes maldito escorrega. Sim, aí sim, Senhor, eu me evaporaria de emoção... Ficaria feliz, imensamente feliz com cada uma de minhas gotas que assim se evaporassem, e evaporadas, tocassem, como suores ou mesmo como lágrimas, este meu misterioso Escorrega. Porque eu desejo ser a única a tocar úmida os veios de sua madeira. Do seu aço. Quero ser dele, ou ser nele, Senhor, inteiramente absorvida. Todavia, o Senhor quer, meu Deus, que seja fluido o meu destino... Que de madeira ou aço ele nada tenha. Que nada em mim permaneça a não ser o caráter fluido, despossuído, das águas. Que nada nem ninguém me possa acolher ou tomar para si. Sim, parece sadismo. Será que Deus é sádico, meu Escorrega? Sinto que Ele me deixou próxima a você, sabendo, já sabendo irremediavelmente, que jamais nos aproximaríamos, que sobre você eu não teria a menor influência. Sim, porque Ele não quer. Talvez, na Sua escondida maldade, Deus queira mesmo é que eu siga odiando os pés que me enlameiam. Será, meu misterioso Escorrega - oh, mistério escorregadio, meu - que não terei outro fim?(Homenagem minha à Adélia Prado)