Não sei de que tempo me olham, por um momento apenas,...

Não sei de que tempo me olham,
por um momento apenas,
interrompendo o seu jeito de nada fazer.

Depois,
regressam aquele nadismo branco-gritante,
e somem destacando-se contra a paisagem
amorfa de mentiras que, teimosas,
se empenham em destruir.

E incomodam, assim teimando,
porque destroem as desculpas.
Porque vivem, e se alimentam,
dum rio onde se diz não haver vida,
e apontam como um dedo branco,
silente mas acusatório, hediondos,
os muros desprezados nos fundos dos quintais
- para onde ninguém olharia se não fossem elas.


Porque apontam os canos brancos de plástico
ostensivamente despejando segredos
nas águas que são (não são ?) de todos.


Porque chamam a atenção para garrafas plásticas,
para as sacolas óbviamente desnecessárias,
e para os objetos mais estranhos
que a deseducação e o desleixo produzem.


Incomodam porque regressaram e estão aí,
e elevam ao alto um restinho de alma de poeta
que ainda existe em nós, quer o saibamos ou não.


Incomodam, porque foi preciso recolher
e tratar o esgoto da cidade.


Incomodam porque foi preciso aprofundar
o leito das águas e limpar lixo acumulado
por gerações de olhar indiferente.


Incomodam porque fazem ninhal
nas árvores beirando as casas,
numa esperança de vida.

Numa esperança de continuidade a que somos obrigados a corresponder enquanto nos olham
com alguma displicência.
Como se viver ou morrer
não lhes fosse coisa muito importante.
Não tanto quanto as nossas consciências.