TRAUMAS Tinha pesadelos nas noites;... tadeumemoria

TRAUMAS
Tinha pesadelos nas noites; ouvia arrastados de correntes, gemidos, o estalar de chicotes... levantava-se aturdido, corria até o rio e mergulhava. O guandú também era assustador, conduzia ‘presuntos,’ era uma espécie de faxineiro, de uma sociedade suja e implacavel; mas no firmamento tinha o brilho da “rainha”, batizara assim aquela estrela mais brilhante; e rezava com as mãos estendidas em sua direção: “salve rainha, mãe de misericórdia, vida doçura, esperança nossa...” Tinha a pele da cor da noite, e aquilo às vezes, ou quase sempre, era um obstáculo até para as coisas mais simples, como conseguir um emprego; mas, herdara aquele terreno da vó Nancy e cultivava uma pequena horta; vivia relativamente bem, claro que com bastante esforço e trabalho. Vó Nancy mencionara várias vezes o sofrimento de seus antepassados, sabia que de alguma forma, seus pesadelos tinham algo a ver com aquilo; sabia que sua bisavó benedita tinha sido escrava, abusada pelo seu amo, tinha dado a luz a um menino louro dos olhos azuis, Atílio, de quem herdara o nome, que no seu primeiro ano de vida foi tirado da mãe. Devia esquecer seus traumas, devia deixar tudo isso no passado, mas nos seus pesadelos, encontrava-se sempre fugindo pelos matos, caçado impiedosamente por cães farejadores que latiam ferozes. Como fugir disso? Eram frequentes os pesadelos, Maria isabel vinha ao seu encontro com o lampião na mão, preocupada com suas saidas repentinas no meio da madrugada, na volta do rio que ficava a menos de cem metros, então iam lá no fundo do quintal, onde tinha uma capelinha e faziam uma oraçao pra santa Anastácia, a partir de então, a noite transcorria tranquila. Na manhã seguinte, até chegava a achar graça das piadas que os vizinhos faziam; mencionavam um lobisomem na beira do rio a banhar-se, ou um escravo em fuga pra algum quilombo; seu rufino afirmava que no casarão malassombrado funcionava na época da escravidão, um quilombo, grupo de escravos fugitivos e rebeldes. Atílio já tinha estado ali e sentira um certa energia, algo de extranatural, queria voltar novamente mas não tinha coragem de ir sozinho; na noite do último pesadelo fizera uma promessa a santa Anastácia se não mais tivesse aqueles pesadelos... Na tarde do dia seguinte reuniu alguns moradores e fizeram orações no casarão, acenderam uma vela de sete dias, as noites transcorreram tranquilas, a partir de então, mas na quarta noite acordou sobressaltado com gritos, levantou-se e percebeu que o casarão pegava fogo, alguns moradores já tentavam em vão debelar as chamas, se juntou a eles mas, por si só as chamas já estavam apagando; algumas paredes já tinham caido. Hoje funciona ali uma pequena capela de santa Anastácia onde realizam-se novenas. Nunca mais pesadelos, Atílio ainda percebe, assim quase como uma visão do que se passou há muito tempo, negros na noite, uns correm, outros jogam capoeira, uns banham-se no rio, tem uma cantoria...suas culturas, suas religiões. Atílio cuida da horta e agora também do milharal, nunca mais pesadelos e quase nenhum tempo para traumas.