Trago através dos dias os estragos que... Amanda Seguezzi
Trago através dos dias os estragos que você me causou.
O cigarro resguarda o teu gosto, escondido timidamente na essência de hortelã. Cada inalar de fumaça surgia no formato das curvas do teu corpo e eu as dispersava com as mãos, evitando qualquer sinal de presença teu. Você tinha carta branca, você tinha todas as cartas, era a dona do jogo. Você foi embora e pela primeira vez eu me senti perdido, um bocado de tralha velha esquecido no canto da casa, toalha molhada jogada em cima da cama.
E foi ali que percebi, quando colocasse o pé direito porta a fora para nunca mais voltar, ali, bem na hora que as mais belas palavras engasgaram na minha garganta, foi ali que apelidei os raios de sol com o teu nome para me sentir aquecido por algum tipo de recordação tua. Depois de abaixar a cabeça, elevar as mãos aos olhos e apertá-los até acordar do pesadelo, constatei que não acordaria, pois nos sonhos ainda estarias comigo.
Foi ali, sentado com a televisão ligada, mesmo sem prestar atenção alguma, balançando os pés num ato involuntário, foi ali que reparei que até os móveis estavam enfeitiçados no teu encanto e sentiam a tua falta também. A casa permanecia assombrada com o teu gargalhar alto e as rosas do jardim murcharam sem os teus cuidados. Eu morria a cada hora sem os teus carinhos e as horas se estendiam e me sorriam, incentivando que eu pegasse o primeiro trem e lhe encontrasse onde quer que fosse. Mas você não queria a minha presença, as minhas reclamações. Você não quis quem lhe queria na eternidade de um momento.
Calava-me o tempo todo para ouvir a marcha da felicidade passando no meio da rua sem intenção alguma de me conduzir. Mordia o canto dos lábios buscando tuas manias, por mais insignificantes que fossem, só para não te perder pra memória ruim. Ainda lhe prendo nos porta-retratos junto das ironias que você jogava no chão junto com as peças de roupa, menina.
Nos intervalos da guerra brutal diária com os infortúnios, adotei um amigo chamado saudade e o tranquei num álbum de fotos preto e branco, num vaso de flores mortas que não consigo me desfazer.
Porém, vou seguindo, esquecendo uma lembrança por dia, desacelerando o coração em uma batida a cada mês. A cada respiração fico mais velho. Mas você nunca vai saber disso, menina, porque eu não existo mais na sua vida. E estás aqui, correndo através dos campos dos meus pensamentos, jovem e radiante. Ainda lembro o sabor da sua pele e o toque do vestido na minha perna enquanto lhe rodopiava naquela valsa. Não recordo o seu nome, porém o seu perfume, ah o mais belo dos perfumes, ainda sufoca os meus dias. Você puxava a minha atenção só pra si e me pegava admirado como quem observa a fotografia de uma paisagem bonita. E ainda coloco dois lugares á mesa, duas xícaras de café em cima da pia, e torço, com esperança adormecida, que venhas de imediato passar a mão em volta da minha cintura, acender um cigarro e dizer que a vida era um eco de felicidades que gritava durante os nossos encontros. Foi assim, desabotoando o meu sorriso, as camadas de tecido das minhas roupas. Foi assim, desmontando-me num olhar afetivo, indo embora com outras agonias sondando os teus olhares, foi assim que eu me apaixonei mais. Calculava o tempo em minutos até o dia que te conheci. Você era o meu tempo, o meu passatempo, rota de fuga de longos contratempos, hoje é só mais um tempo perdido dentre tudo que eu nunca disse, mas sempre pensei que você soubesse.
Para a clandestina do meu mais bonito engano.
E mais triste também.