Domingo Preciso de uma verdade para... Julia Caliman

Domingo

Preciso de uma verdade para apalpar, pensava enquanto abria os olhos em um espaço entre o sofá e a mesa de centro. Levantou, foi até a janela, viu um lindo motivo para sorrir nos céus mas uma lágrima caia de seu rosto; em forma de piedade e condenação. Enquanto alguns amigos acordavam, enxugou a lágrima que secou antes de tocar suas mãos, sem querer conversar subiu para seu quarto.

Seu maior erro foi não perceber que enquanto tremia de medo do futuro, seu futuro seria tremer de medo.

Tomou banho como quem quer arrancar a pele, na tentativa de alcançar sua alma, mas sabia que o caminho era mais difícil do que se esfolar vivo, não há pedras no caminho físico que sejam mais dolorosas do que a do psíquico; ele sabia disso e isso o atormentava, ser errado e não saber é tão confortável, quando se percebe o erro, ai começamos a falar da dor.

A dor, a dor mecânica que conduz ao erro, em uma tentativa eufórica de ser feliz, ao menos por horas, minutos, porque não segundos? O sentido da vida não é a felicidade? E por ela não matam, enganam, manipulam! Qual o problema de tê-la e pagar a prazo? As respostas o vinham na cabeça e ele as contrariava, tentando se apoiar em uma desculpa inútil que não o fizesse entrar no estado de agonia, esse que pode ser caracterizado pelo pagamento a prazo da felicidade, e assim como as dividas, quando você faz tantas contas que a soma da parcela de todas equivale ao valor a vista da mais alta delas, meu amigo, isso é um problema.

Enquanto se troca para existir em uma manhã de domingo, coloca uma música alta para dispersar os pensamentos, quem sabe assim a música os sugam e eles somem. Seu maior medo depois da morte seria não deixar de existir e pensar; o pensamento é um karma do homem, e como todos os karmas, se você não descobrir o verdadeiro sentido deles, será atormentado como uma dor de dente que aparece cada vez mais intensa.

Abriu a porta e saiu, sem dar bom dia aos colegas de república, acendeu um cigarro e foi em busca de um café preto, amargo, tudo o que ele podia oferecer para seu corpo no momento, uma dose do próprio sentimento. O atendente solicitou seu pedido com um péssimo humor, quando o dono do estabelecimento apareceu, o funcionário se direcionava para sua mesa com o café, uma ótima oportunidade para fazer um comentário prejudicial ao rapaz que o atendeu mal e contribuiu para o seu dia continuar piorando. O chefe estava prestando a atenção em sua mesa, mas no momento que seria uma válvula de escape para sua frustração, ele pediu açúcar.

Sentado na mesa, tomando seu café adoçado e refletindo o porque da atitude piedosa com o rapaz, tentou ir além do “se colocar no lugar do outro” e ficou no seu próprio eixo, analisando os possíveis motivos do acontecimento. Em um domingo, atender pessoas mal humoradas que se julgam melhores do que ele e o mundo, que pagam pelo produto consumido como quem está dando uma esmola, mas não aceita se seu troco estiver faltando 5 centavos. Olhou para o rapaz da mesa ao lado, um senhor de meia idade, obeso, comendo um pedaço de bolo com coca cola pela manhã, e um prato contendo marcas de frituras, fala com o mesmo atendente em um tom autoritário, pesado, sem uma gentileza ou um agradecimento, não precisou ir muito longe para compreender um dos motivos da péssima impressão que teve do atendente, muitas pessoas tem dificuldade em olhar para o semelhante e ver uma história, ver sofrimentos, conquistas, sonhos, tais sonhos que muitas vezes são destruídos por pessoas insensíveis que não são capazes de apenas perceber, ele queria mudar o mundo mas não queria mudar si mesmo; ele era uma ideia falsa, assim como todos que tentaram vencer uma guerra com mortes.

Gostou de olhar para as pessoas como uma vida, e não como uma casca mecânica programada para julgá-lo realçando as supostas qualidades que o fazem se minimizar diante delas, ou se engrandecer diante dos defeitos de outras. Ele não gostava de fazer parte desse sistema falido de opiniões superficiais, mas quando está incluído em um sistema, a questão de bem ou mal é apenas uma característica do mesmo, e quando se transcende esses tais sistemas que nos unem, o bem e o mal não passam de opiniões, com forças que agora não são capazes de o afetar.

O senhor ao lado que se expressava frio e carrasco, interrompeu seus pensamentos com gritos e desespero ao atender uma ligação, pelo que foi entendido, a irmã adoecida acabou de falecer, alguns funcionários ofereceram água com açúcar e tentaram lhe convencer de que seria uma péssima ideia dirigir eufórico. Ele não deu ouvidos e saiu, freando bruscamente e acelerando em seguida, a opinião que teve do senhor foi logo destruída por um sentimento de pena e receio, nada justifica uma atitude estúpida descontada pelos problemas pessoais, mas se a maioria não consegue se conter, é bom respeitar quando isso acontecer.

Pagou a conta, poderia ter poupado esse dinheiro se tomasse café na república, mas as vezes era preciso sair, ver qualquer movimento novo para silenciar os pensamentos que o metralhavam em casa, no vazio das conversas que eram sempre as mesmas: coisas. As coisas estavam sufocando seus sentimentos, a ideia de posse: “possuir coisas porque você é o que possui” é tão vaga, "o dia que não possuir nada vai saber quem realmente é", pensava enquanto seus olhos se fixavam em um malabarista no sinal, que se concentrava e sorria, não como quem cobra e sim como quem doa. Doa sua arte, sua vida, suas “coisas” para viver cada dia esperando nele aproveitar os maiores segundos possíveis.

As pessoas ao redor olhavam para os artistas de rua com receio de se aproximar. Como se ao olhar um resumo de suas vidas viessem prontos diante de seus conceitos mesquinhos, e são sempre os mesmos: bandidos, drogados, marginais. Ele também já fez parte desse grupo gigante de pessoas alienadas e lembra quando uma vez um colega contou a história de um mochileiro, disse que ele era rico, tinha emprego fixo, filhos, pela descrição possuía mais riquezas que sua família, e o espanto foi inevitável, pensou o porquê da atitude e agora sabe bem: liberdade. Enquanto atravessa a rua em passos lentos, não mais observando o artista, lembra de uma frase do sábio Nietzsche: "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." Essa frase engolida pelas suas inquietações foi o suficiente para concluir seu pensamento: "pena dos que condenam e discriminam, eles não podem ouvir a música, eles estão presos em suas vidas e sentimentos hipócritas, pena".

Ao voltar pela longa avenida percebe que está quase na hora do almoço, percebe também que está melhor do que quando saiu de casa, que a compreensão acalma os pensamentos e que cada vez mais sente uma necessidade de compreender a vida, se espanta ao olhar para todas as pessoas andando freneticamente de um lado para o outro, será que elas pensaram ao menos uma vez no dia quem elas são? E quantas vezes julgaram e rotularam quem o outro é? Como um ser vivo pensante em todo esse tempo de existência não descobriu e levou ao esquecimento o fato mais importante: Nós. Ao seu ver, uma pessoa incapaz de ao menos tentar refletir sobre isso, é apenas um aglomerado de matéria que irá contribuir para a alienação das próximas gerações. É cômodo aceitar os acontecimentos como algo predestinado, é péssimo abrir mão do potente sentido humano que é o pensamento, e no lugar disso, aceitar os fatos por algo que te bombardearam a vida toda. Sendo assim, você é o que os outros querem que seja.

“Você é o que os outros querem que seja” essa frase se hospedou em sua cabeça, lhe fazendo lembrar de quando tinha 15 anos, cheio de sonhos e vontades, desejava ser desenhista. Amava as cores e a oportunidade de criar o que o papel lhe oferecia, procurou algum desenho antigo e não encontrou, resolveu desenterrar o velho sonho, deixando claro pra si mesmo que não levaria a diante, que era apenas uma vontade momentânea, pensava isso como quem dava satisfações para seus egos.

Um amigo entrou no quarto e o viu desenhando, era apenas traços se encontrando e formando uma imagem, qualquer ser considerado humano poderia perceber a magia que se materializava naquele papel. O grande azar foi que as primeiras pessoas que viram sua arte, quase não eram humanas, nem perceptivas, mas eram as pessoas mais importantes para ele: Seu pai, e agora seu melhor amigo. Enquanto era criticado por estar desenhando e não aproveitando o dia da maneira que o grupo de amigos achavam melhor, lembrou que quando parou de desenhar foi porque seu pai falou que o desenho do filho poderia servir de esboço para crianças com Síndrome de down, mas dessa vez não permitiu que as criticas destrutivas lhe afetassem , percebeu ao bloquear esse dejávú, que quando aprendia lidar com essas criticas, tornava-se um humano capaz de lidar com os elogios sem deixá-los influenciar de maneira negativa em sua vida, e isso, apenas quem é capaz de filtrar as opiniões de fora é capaz de conquistar.

Sorriu, pois recuperou um sonho, renascendo junto a força necessária para a esperança prevalecer nos momentos de conflitos e a dose certa de humildade para lidar com as conquistas. Realmente, essas coisas só acontecem nos domingos... Deitou em sua cama concluindo seu dia com um propósito, analisar suas atitudes negativas e as corrigir, pois são essas capazes de transformar, e sim, são poucas e quase insignificantes, podendo ser comparadas com uma célula maligna em um corpo de trilhões de células saudáveis.