Catar os cacos do caos, como quem cata... Affonso Romano de SantAnna
Catar os cacos do caos, como quem cata no deserto
o cacto - como se fosse flor.
Catar os restos e ossos da utopia, como de porta em porta
o lixeiro apanha detritos da festa fria e pobre no crepúsculo se aquece na fogueira erguida com os destroços do dia.
Catar a verdade contida em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas, no pêlo - do dia cão.
Recortar o sentido, como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionisio e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido beber o vinho, ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido, pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer o fígado - como era antes.
Catar palavras cortantes no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça? Então de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada deixar gravada a emoção
Cacos de mim, Cacos do não, Cacos do sim, Cacos do antes
Cacos do fim
Não é dentro nem fora, embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora, que violento o sentido nos deflora.
Catar os cacos do presente e outrora e enfrentar a noite
com o vitral da aurora