Nos olhávamos secamente. O olhar de... Lucas Carneiro de Oliveira
Nos olhávamos secamente. O olhar de duas almas desgatadas por sentimentos brandos, suores sem sal e cafés expresso. Porém, pela primeira vez, foi como se não nos olhássemos com os olhos, mas com o que há no fundo obscuro deles. Seria isso uma janela da alma, esta já tão enjoada de rótulos, de pretextos e mesmisses, ou apenas mais uma cavidade repleta de sangue, músculos e toda essa coisa qual a única finalidade é apodrecer?
Ele trazia um certo peso, uma certa tristeza estreitamente doce no olhar, que ao primeiro choque, a intrigou. Nem conquista, nem asco, e com certeza muito longe de desinteresse. Ela carregava uma beleza não estereotipada, e essa primeira impressão desceu suavemente pela sua garganta deixando seu gosto por onde passava. Lábios, boca, bochechas, gengivas, língua, garganta. Como um bom vinho. E alí, mesmo que de relance, mesmo antes de se tocarem, ele sentia que já a devorava, já a consumia e a fodia.
E pela janela do nosso quarto a água caía fina e desaritmada. E uma gota, intrusa, pequena e incessante pingava na nossa cama. Tarde demais pra perceber, tarde demais pra arrumar ou se importar. Não incomoda. Mas também não deixa em paz. Era a natureza cuspindo sua indiferença sobre nós. E nos fazendo lembrar quem existe pra quem. E sabe, não é de todo ruim ser insignificante. Talvez não viremos filmes de cinema, e talvez depois de nossa morte não sejamos lembrados pela humanidade. Mas você se importa? Pensei. Enquanto havia a colocado deitada, já sem roupa, e desenhava com minha barba em seu corpo como um andarilho qualquer que vai sem pressa nenhuma de chegar a lugar algum. Suspeitei que não se importasse, pelo modo como suas covinhas pareciam estar pintadas à mão em seu rosto, e nesta hora, pensei quão bom foi não estragar tudo dizendo algo ruim. Nem dizendo algo bom, ou dizendo qualquer coisa. Se o fizesse talvez não escutasse a sua respiração e perderia o ritmo do seu coração batendo prensado contra o meu.
E enquanto estávamos ali, brindando a nossa insignificância, o resto do mundo continuava girando, ignorando por completo aquelas duas almas de olhares desgastados, vivendo em épocas de amores brandos, suores sem sal e cafés expresso. E as gotas, naquele quarto, naquela cama, por sua vez, continuaram pingando exatamente do mesmo jeito. Porém, não mais só de chuva.