REDENÇÃO Alguém da cozinha me chamou... Gilliard Alves
REDENÇÃO
Alguém da cozinha me chamou para almoçar, mas eu não queria ver ninguém, meus olhos não queriam me obedecer, pois havia um mistério em mim que meus olhos queriam submergir das profundezas de minha ignorância. O ruído de cães latindo na rua, de pessoas conversando sobre alguns problemas familiares, de pisadas correndo atrás de qualquer espécie de fuga desse tédio que sempre fumega o quão nós somos banais e fúteis, nem os carros, nenhum desses sons conseguiam prender a minha atenção, nada disso despertava algum tipo de curiosidade em meu ser. Então, um grito ecoou. Olhei para todos os lados, e todos continuavam comendo, almoçando, conversando, se divertindo, vendo TV, e novamente um outro gritou ecoou diante dos meus ouvidos. Levantei-me, e senti todo o peso do mundo em cima de meus pés. Tudo é tão estranho. Por que só eu conseguia ouvir aquele grito? Fui para fora da casa: havia duas crianças empinando pipa na rua, um homem bêbado cantando qualquer coisa tentava manter-se em pé enquanto caminhava para sua casa; um carro tocava uma música altamente enquanto os donos do mesmo dançavam, bebiam, riam, estavam felizes. Olhei para o céu, e senti que nada mais conseguia me enxergar, nada mais conseguia me ver, nada mais era capaz de perceber a minha existência tão efêmera e minúscula.
Era o mundo que estava completamente errado ou seria quem estava errado no mundo? O mundo... O mundo... O que era o mundo? Tudo desabava, tudo permanecia desabando, e as pessoas continuavam rindo e trabalhando; o mundo desabava no mais puro vazio, mas os hotéis, os estádios, os clubes, as igrejas, as casas, os asilos, os cemitérios permaneciam cheios e lotados. Por quê? Não sei o que estava acontecendo dentro de mim, mas acho que todos os meus sentimentos formavam imagens como se fossem rostos com olhos que me observavam com certa admiração e perplexidade, e me senti completamente despido e sozinho_ que sensação estranha e forte são estes momentos em que sentimos a infinitude do universo dentro de nosso corpo tão pequeno. Mas nada poderia desvirtuar a pureza de meus defeitos, nada poderia desviar o silêncio marítimo das ondas que ressoavam alaridos de anjos emudecidos no interior de minha alma, e minhas mãos tentavam em vão colher os gritos que queriam se libertar de algumas feridas antigas em que o tempo nunca se esquecera de limpar nas salas e quartos onde eu escondia tantos segredos de mim mesmo. Uma chuva fina desceu do céu, as pessoas corriam para suas casas, e corri para dentro do ninho de minha esperança que eu havia imaginado ter perdido, e finalmente uma mão tocou em meu ombro esquerdo, virei meu rosto e só havia as flores do quintal sendo acaricidas pelo vento, e uma paz indizível chorou em meu corpo, chorou tanto em meu corpo que meu coração se inundou com uma alegria que pensei não mais existir nesse mundo, enquanto todos almoçavam na cozinha, eu sentia o espírito vívido da vida voltando outra vez para junto de meus braços. Ainda reside uma gota de redenção no buraco mais fétido de meu ser.