NEM DEDOS Minha mãe entrou em casa com... Tadeu Memória
NEM DEDOS
Minha mãe entrou em casa com o aspecto de quem carregara um fardo muito pesado, no entanto, tudo o que ela trazia era aquele envelope. Sentou-se à mesa, pôs o indicador e o polegar da mão direita, cada um em um canto dos olhos como se quisesse deter as lágrimas, e, pôs sobre a mesa o envelope, era a ordem: “o juiz deu quarenta e oito horas e acrescentou vinte mil a indenização; mesmo assim o dinheiro ainda não é suficiente para comprarmos o chalezinho do seu Ivo, apesar de ser a casa mais em cota que encontramos”. E não tínhamos mais tempo para procurarmos outra; entre três ou quatro quarteirões, a nossa era a única casa que permanecia de pé, desafiando tratores e compressores, que nivelavam o solo, juntando entulhos do que foram os lares de nossos vizinhos. Por ali passaria a lest-oeste, uma avenida que ligaria o mucuripe à barra do ceará; e as avaliações nem sempre eram justas. Muitos ficaram sem condições de comprar outra casa, outros só conseguiram porque foram para muito longe do centro; mas nós queríamos continuar ali no jacarécanga, e tínhamos de pagar o preço... Antonio meu irmão mais velho, trouxe apesar de ser hora do almoço, uma xícara de café, pois sabia minha mãe viciada no mesmo: “seu Dedé disse que a hora que a senhora quiser, na televisão e na geladeira ele põe preço...” mamãe soltou uma imprecaução; detestava aquele usurpador, contudo sabia-se sem saida: “vão-se os anéis, ficam os dedos.” A voz de minha mãe pareceu-me soar mais rouca que de costume, meio travada por uma angústia que ela só continha para nos exemplar. E na ingenuidade dos meus doze anos eu perguntava, “e quem não tem anéis?” afinal não tinha sido sempre assim, mesmo quando foi para comprarmos aquela casa tivemos de vender a geladeira para juntarmos com aposentadoria do meu pai,desta maneira conseguimos aquele pequeno teto. Éramos pobres, mas tínhamos esperança. Nossos l´deres lutavam pela queda da ditadura militar, pelo fim daquele sistema opressor.
Um ou dois anos depois a avenida estava pronta. Chamar-se-ia Castelo Branco em homenagem ao presidente da república. Na inauguração muitos políticos, a imprensa falada escrita e televisada. Todos queriam aparecer ao lado da obra que representava o progresso. A banda de música da polícia militar tocava o hino nacional; no ar, a evolução de alguns caças de guerra. Não se perdia uma nota do hino, nem os rasantes dos mirages. De repente o mergulho vertical de um mirage, que mais parecia manobra de um kamikase em busca do inimigo... o choque, a explosão, casas destruídas... foi o que de mais vivo ficou na minha mente. E a lembrança de que o mar não fica a trezentos metros...
Passados vinte anos derrubou-se a ditadura. Há um sistema democrático, mas não há distribuição de renda, e, a corrupção aumentou. Pensei que nunca diria isto: sinto saudades dos generais, afinal a beira-mar se aproxima. Falam em elitizar o pirambu e agora não temos mais anéis, acho que nem dedos temos mais...