Faz de Conta Qu eu Acredito

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Também já fui brasileiro

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

Carlos Drummond de Andrade
Andrade, C. D. Sentimento do Mundo, 1940

Devo confessar preliminarmente, que eu não sei o que é belo e nem sei o que é arte.

Mário de Andrade
ANDRADE, M., O Baile das Quatro Artes, 1943

Eu não devia te dizer , mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Álvaro de Campos

Nota: Trecho do poema "Acordar"

Mas eu te possuirei mais que ninguém
porque poderei partir
E todas as lamentações do mar,
do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.

Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine.

Paulo de Tarso

Nota: Adaptação de 1 Coríntios 13:1-13.

Eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até àquele dia.

Paulo de Tarso
Bíblia Sagrada. II Timóteo 1:12

Nota: Tradução de João Ferreira de Almeida (Atualizada)

...Mais

Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.

Manoel de Barros
BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011.

A uma mulher

Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade.

Rio de Janeiro, 1933

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Mário de Andrade
ANDRADE, M. Poesias completas: Volume 2, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014

Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o pito a punhal..
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira..
Pulei o muro do convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

Eu nunca fui uma moça bem-comportada. Afinal, nunca tive vocação pra alegria tímida, pra paixão sem beijos quentes ou pro amor mal resolvido sem soluços. Eu quero da vida o que ela tem de cru e de bonito. Não estou aqui pra que gostem de mim. Estou aqui pra aprender a gostar de cada detalhe que tenho. E pra seduzir somente o que me acrescenta. Sou dramática, intensa, transitória e tenho uma alegria em mim que as vezes me cansa. Por isso, não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. Venha a mim com corpo, alma, voracidade e falta de ar!

Marla de Queiroz

Nota: Versão adaptada de trecho de texto de Marla de Queiroz. Por vezes atribuído, de forma errônea, a Caio Fernando Abreu ou Clarice Lispector.

...Mais

Mas eu, em cuja alma se refletem
As forças todas do universo,
Em cuja reflexão emotiva e sacudida
Minuto a minuto, emoção a emoção,
Coisas antagônicas e absurdas se sucedem —
Eu o foco inútil de todas as realidades,
Eu o fantasma nascido de todas as sensações,
Eu o abstrato, eu o projetado no écran,
Eu a mulher legítima e triste do Conjunto
Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água.

É no ínfimo que eu vejo a exuberância.

Manoel de Barros
BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011.

Felismente existe o álcool na vida.
Uns tomar éter, outros, cocaína.
Eu tomo alegria!
Minha ternura dentuca é dissimulada.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Estou farto do lirismo comedido.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
Pura ou degradada até a última baixeza
eu quero a estrela da manha.
... os corpos se entendem, mas as almas nao.
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Eu que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.

Machado de Assis
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1881.

Eu sou a pedra no meio do meu caminho.
gostaria de esquecer que vivo tropeçando em mim:
ao invés de olhar por onde ando,
tentando me desviar de comigo,
olharia o horizonte, bem lá adiante,
onde ainda não cheguei pra me atravessar o caminho.

Eu não sei onde mora a raiz da mágoa.
O que sinto é sua ardência na alma.

Escrevo deitado e as linhas ficam tortas, como se eu tivesse bebido. Só bebi um pouco de tristeza.

Se te queres matar

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Álvaro de Campos
PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática. 1944 (imp. 1993). p. 22