Falta de Ar

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Respiro o vento, e vivo de perfumes
No murmúrio das folhas de mangueira;
Nas noites de luar aqui descanso e a lua enche de amor a minha esteira.

Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos.

Machado de Assis
Ressurreição (1872).

É triste esquecer um amigo. Nem todo mundo tem amigo.

Faço cada noite o balanço do meu dia: se ele foi estéril como educação pessoal, sou impiedoso com os que me fizeram perdê-lo... A vida corriqueira tem tão pouca importancia, e se parece tanto; a vida interior é difícil de dizer, há uma espécie de pudor, é tão pretencioso falar a respeito. Você não pode imaginar como é a única coisa que importa para mim, o que modifica todos os valores, até meus julgamentos sobre os outros... Antes de tudo, sou duro comigo mesmo, e tenho todo o direito de renegar nos outros o que renego ou corrijo em mim.

Não diga as coisas com pressa. Mais vale um silêncio certo que uma palavra errada!

Caso do Vestido

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

Carlos Drummond de Andrade
Andrade, C. D. "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985

Senhor fazei de mim um instrumento de vossa paz.

Pois de amor andamos todos precisados! Em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente! Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.

As coisas muito claras me noturnam.

Manoel de Barros
BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011.

O seu amor, a sua ternura, eram apenas um sonho. Mas valeria a pena aceitar sonhar um amor que queremos viver na realidade?

Apesar de tudo, o amor era menos simples do que ele julgava. Era mais forte do que o tempo. O amor, no fim das contas, era feito de inquietações, de renúncias, de pequenas tristezas que surgiam a todo instante.

Cada um, afinal, projeta no mistério divino as qualidades imanentes à sua própria alma.

Lutar com palavras
é a tuta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
[...]
Palavra,palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.

Vencido está de amor

Vencido está de amor meu pensamento
o mais que pode ser vencida a vida,
sujeita a vos servir e instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento
ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.

Com essa pretensão está segura
a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.

Jurando não seguir outra ventura,
votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.

Luís de Camões
Obras completas de Luis de Camões II (1843).

Nota: Soneto CLIX.

...Mais

O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois árvore.

Manoel de Barros
BARROS, M. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

A flor e seu nome

Mas o que impressiona mesmo no amor-perfeito é o nome. Que responsabilidade, meu filho! Há por aí uma planta chamada de amor-de-um-dia, que não carece muito esforço para ser e acontecer, como doidivanas. Outra atende por amor-das-onze-horas e presume-se como sua vida é folgada. Há também amor-de-vaqueiro, amor-de-hortelão, amor-de-moça, amor-de-negro... muitos amores vegetais que desempenham função limitada. Mas este aqui não tem área específica, não se dirige a grupo, ocasião, profissão. É absoluto, resume um ideal que vai além do poder das flores e dos seres humanos.
Que sentirá o amor-perfeito, sabendo-se assim nomeado? Que tristeza lhe transfixará o veludo das pétalas , ao sentir que os homens que tal apelação lhe dera não são absolutamente perfeitos em seus amores? Que aquele substantivo, casado a este adjetivo, sugere mais aspiração infrutífera da alma do que modelo identificável no cotidiano?
A tais perguntas o sóbrio amor-perfeito não responde. O outono tampouco. Talvez seja melhor não haver resposta.

Os políticos e a as fraldas são semelhantes, possuem o mesmo conteúdo.

Eça de Queirós

Nota: Versão de Link

Eu creio que na vida os amores que merecem ser cultivados, as pessoas, que verdadeiramente merecem ser cultivadas são aquelas que a gente se encontra e a gente não precisa dizer muita coisa... Basta olhar para a gente e já sabe mais ou menos o que se passa com a gente, porque só pode dizer: eu te amo aqueles que inúmeras vezes disse: eu te perdôo, porque o amor, a gente só tem certeza que ama, depois que teve que infinitas vezes perdoar.

Sábio é o homem que chega a ter consciência da sua ignorância.

Sua tarefa não é de prever o futuro, mas sim de o permitir.”