Falecimento
Se é mesmo verdade o que os sábios nos dizem e se existe um lugar que nos acolhe (depois da morte), talvez o amigo que acreditamos extinto tenha apenas nos precedido.
No meio da vida acontece que a morte surge e mede o homem. A visita é esquecida e a vida continua. Mas o fato está feito, silenciosamente.
Sabe-se que enquanto vivemos estamos mais ou menos expostos à inveja, mas depois da nossa morte os nossos inimigos deixam de nos odiar.
O avarento gasta mais no dia da sua morte do que gastou em dez anos de vida, e o seu herdeiro mais em dez meses do que ele na vida inteira.
O grande político conhece-se pelo fato de os seus pensamentos viverem depois da sua morte ou da sua derrota.
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Oração do Doador Desconhecido
Não chamem o meu falecimento de leito da morte, mas de leito da vida.
Deem a minha visão ao homem que jamais viu o raiar do sol, o rosto de uma criança ou o amor nos olhos de uma mulher.
Deem o meu coração a uma pessoa cujo coração apenas experimentou dias infindáveis de dor.
Deem o meu sangue ao jovem que foi retirado dos destroços de seu carro, para que ele possa viver para ver os seus netos brincarem.
Deem os meus rins às pessoas que precisam de uma máquina para viver de semana em semana.
Retirem os meus ossos, cada músculo, cada fibra e nervo do meu corpo e encontrem um meio para fazer uma criança inválida caminhar.
Explorem cada canto do meu cérebro. Retirem as minhas células, se necessário, e deixem-nas crescerem para que, um dia, um menino mudo possa ouvir o gritar em um momento de felicidade ou uma menina surda possa ouvir o barulho da chuva de encontro à sua janela.
Queimem o que restar de mim e espalhem as cinzas ao vento, para que elas ajudem as flores a brotarem.
Se tiverem que enterrar algo, que sejam meus erros, minhas fraquezas e todo o mal que fiz aos meus semelhantes.
Deem os meus pecados ao diabo. Dêem a minha alma a Deus.
Se, por acaso, desejarem lembrar-se de mim, façam isso com ação ou palavra amiga a alguém que precise de vocês.
Se fizerem tudo o que pedi, estarei vivo para sempre.
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...