Era

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Resignou-se pois. A resignação era doce e fresca. Nascera para ela.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

A gente não sabia

A gente ainda não sabia que a Terra era redonda.
E pensava-se que nalgum lugar, muito longe,
Deveria haver num velho poste uma tabuleta
[qualquer
- uma tabuleta meio torta
E onde se lia em letras rústicas: FIM DO MUNDO.
Ah! depois nos ensinaram que o mundo não tem
[fim
E não havia remédio senão iremos andando às
[tontas
Como formigas na casca de uma laranja.
Como era possível, como era possível, meu Deus,
Viver naquela confusão?
Foi por isso que estabelecemos uma porção de
fins de mundo...

Sinto falta mesmo é de não sentir nada. Eu não sentia nada. Era tão bom.

Amamos A, amamos B, amamos C, e por alguns nem era amor, e sim entusiasmo, e sabe-se lá de quantos entusiasmos somos capazes.

Ele me confundia. Num dia era um príncipe, no outro virava um sapo e eu nunca entendi, mas eu ainda gostava.

A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Clarice Lispector
Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Nota: Trecho do conto Amor.

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Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom

Não era um tanto esquisito ela não saber quem era? E também não era uma injustiça o fato de ela mesma não poder determinar sua aparência? Isto simplesmente lhe tinha sido imposto ao nascer. Seus amigos, estes sim ela talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a si própria. Não tinha sequer decidido ser uma pessoa.
O que era uma pessoa?

A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi.

Clarice Lispector
A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

É claro que os cidadãos de Ankh-Morpork sempre afirmaram que a água do seu rio era incrivelmente pura. Segundo eles qualquer água que tivesse passado por tantos rins tinha que ser, de facto, muito pura.

EC - E como aconteceu a montagem do show?
FA - A nossa principal idéia era mostrar que não existe palco e platéia, com uma muralha que precisa ser quebrada. Um show é uma oportunidade de pessoas raras se encontrarem, e compartilharem das coisas que acham fazer sentido. E isso tinha de ser montado de alguma maneira. Nosso primeiro show durou três horas e meia. Tinha poesia, festa, ciranda no meio do palco... Uma bagunça organizada. Naturalmente, tinha a ordem das músicas, onde iriam entrar as poesias. Eu ensaiava com metade da trupe em um dia, com outra metade no dia seguinte e tínhamos um ensaio final antes do show. Era uma apresentação longa, mas tudo foi necessário, porque estávamos nos descobrindo e amadurecendo o espetáculo. Depois, ficamos na célula de cada coisa: o que deu certo, os melhores momentos... Com o passar das apresentações, assistindo a vídeos, percebemos onde tem momento de silêncio, onde pode melhorar. Ao longo do tempo, entraram mais informações sobre o Lobo da Estepe , textos meus, teatro, lira, malabares... Agora, queremos usar tecido, juntar realmente tudo isso numa coisa só. O TM se encaixa em qualquer lugar, seja palco, quintal, sala... Conseguimos ocupar o espaço da maneira mais adequada.

EC - O figurino é um outro atrativo dos shows. Por que escolher a pintura de palhaço?

FA - A escolha do figurino foi motivo de dúvidas para alguns no início. Para que usamos a coisa do palhaço? Porque ele é 100%, um ser muito disposto. Uma coisa que usamos como chavão pra todo mundo: os opostos se distraem, os dispostos se atraem. Até uma simples bicicleta pode ser um pretexto para um palhaço dar show: com apenas quatro pedaladas, ele faz o povo rir, cai, levanta, com disposição de fazer arte sem o compromisso de buscar fórmula que dê certo. Nós queríamos realizar as coisas, falar as poesias, brincar no palco, fazer um circo em que a gente possa brincar de pensar. A trupe virou um círculo de criação, criatividade, uma célula forte por si só... Para isso se realizar ao vivo, não basta tirar as músicas e se apresentar. A trupe acredita no que está fazendo e tem essa disposição permanente.

A Aranha

A ARANHA do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

Fernando Pessoa
Poesias Inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática. 1955 (imp. 1990). p. 82

Velho cego, choravas quando a tua vida
era boa, e tinhas em teus olhos o sol:
mas se tens já o silêncio, o que é que tu esperas,
o que é que esperas, cego, que esperas da dor?

No teu canto pareces um menino que nascera
sem pés para a terra e sem olhos para o mar
como os das bestas que por dentro da noite cega
- sem dia ou crepúsculo - se cansam de esperar.

Porque se conheces o caminho que leva
em dois ou três minutos até à vida nova,
velho cego, que esperas, que podes esperar?

Dar um tempo. Férias. Tomar fôlego. Reorganizar as ideias. Era tudo o que eu precisava para continuar. Sabe o que é isso? Eu, minhas amigas, biquínis e um caderninho. No apartamento em que nós estávamos, sempre alguma delas gritava da porta: Pegou o boné? Alguém achou meu óculos? Vai fazer frio? Fê, pegou seu caderninho? E assim eu saía. Com cangas, blusas de frio, protetor solar e o tal caderninho. (Tenho sempre um caderninho na bolsa, aonde quer que eu vá). Hoje - já em casa e de volta ao trabalho - meu caderninho está assim: cheio de areia e palavras. Meu coração está leve, mesmo sabendo que a realidade está na ponta do meu nariz e - amigas! - é chegada a hora de ira à luta! De novo. O lado não tão bom disso tudo é o desassossego de descobrir coisas sobre nós mesmas que a gente insiste em não enxergar. A parte boa é que - sei lá - existe parte boa? Brincadeira! Sempre existe. E eu não posso me dar por vencida com um bronzeado desses. Não agora. Não hoje. Mesmo tendo lido aquela frase do livro da Maitê Proença que me fez chorar. Não de tristeza. Chorei porque sou burra mesmo. Se tivesse lido esta frase antes (Aonde você estava, Maitê??), talvez eu tivesse sofrido menos. Por ele. Aquele que foi o amor da minha vida. Que talvez ainda seja. Que sempre será. Mas a tal frase que me puxou o tapete foi simples como tudo o que eu gosto: "não quero o amor da minha vida ocupando o lugar de amor da minha vida". Entendeu? Decorou? Lindo isso. Lindo e triste. Maitê sabia. Soube antes de mim. Bem antes. Esperta essa garota. Tão linda, atriz e sublime com seu olhar verde-esmeralda - Maitê Proença - nossa Dona Beja, também teve seu coração machucado. Dilacerado, imagino. Normal. Desse mal, meu bem, ninguém escapa. Mas o bom disso tudo é que consigo agora abrir meu coração sem rodeios. Sim, amei sem limites. Dei meu coração de bandeja. Sim, sonhei com casinhas, jardins e filhos lindos correndo atrás de mim. Mas tudo está bem agora. Eu digo: agora. Houve uma mudança de planos. E eu me sinto incrivelmente leve e feliz. Descobri tantas coisas. Tantas. Tantas. Existe tanta coisa mais importante nessa vida que sofrer por amor. Que viver um amor. Tantos amigos. Tantos lugares. Tantas frases e livros e sentidos. Tantas pessoas novas. Indo. Vindo. Tenho só um mundo pela frente. E olhe pra ele. Olhe o mundo! É tão pequeno diante de tudo o que sinto. Vejo minha lista - anotada com um coração bic no meu caderninho-de-bolsa: coisas que preciso fazer antes dos 35 anos. Sinto uma alegria infantil. Está tudo ali. Meus desejos. Meus maiores sonhos. Minha obsessão por um laptop. Minha vontade de escrever um livro. Ter um filho. Fazer mil cursos. Aprender coisas novas. Conhecer lugares. Pessoas. Me conhecer mais. Me descobri um pouquinho e parece que foi tanto! Porque agora muitas coisas fazem sentido. Minhas palavras. Tudo o que quero ser e criar. Sofrer dói. Dói e não é pouco. Mas faz um bem danado depois que passa. Descobri. Ou melhor, aceitei: eu nunca vou esquecer o amor da minha vida. Nunca. Mas agora, com sua licença. Não dá mais para ocupar o mesmo espaço. Meu tempo não se mede em relógios. E a vida lá fora, me chama!

Nunhum gesto meu era indicativo de que eu, com os lábios secos pela sede, ia existir.

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

É que as coisas simplesmente não eram do seu lado. Pensou uma bobagem: até sua pequena cara era de lado. Em esquina. Nem pensava se era bonita ou feia. Ela era óbvia.

Clarice Lispector
A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Nota: Trecho do conto Um dia a menos.

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Mesmo sofrer era bom porque enquanto o mais baixo sofrimento se desenrolava também se existia.

Clarice Lispector
Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Dentro

Me escondi
Pra não ter que ver você dizer
Coisas que eu não merecia ouvir
Era você ou eu

Escolhi
O pior lugar pra me esconder
Me tranquei por dentro de você
E não sei mais sair

Pela rua penso em ti
Volto em casa penso em ti
No trabalho sem querer
Quando vejo to pensando em você

Ressurgi,
De onde não imaginei
E aprendi que nunca sei
Enganar meu coração

Escrevi,
Frases soltas pelo chão
Esperei você dormir
Pra jurar minha paixão…

Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor. Amor não tem nada a ver com isso. Ela era uma parasita. Ela o matou porque era uma parasita. Porque não conseguia viver sozinha. Ela o sugou como um vampiro, até a última gota, para que pudesse exibir ao mundo aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores imundas. Aquelas flores nojentas. Amor não mata. Não destrói, não é assim. Aquilo era outra coisa. Aquilo é ódio.

Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser. (...)
Era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade. Para ela a realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavra “realidade” não lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus.

Clarice Lispector
A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.