Epígrafes de Rubem Alves

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Quando a gente abre os olhos, abrem-se as janelas do corpo, e o mundo aparece refletido dentro da gente.

É isto que amamos nos outros: o lugar vazio que eles abrem para que ali cresçam as nossas fantasias.

Foi assim que a escola me ajudou: forçando-me a pensar ao contrário dos meus próprios pensamentos.

De vez em quando o diabo me aparece e temos longas conversas.

Em nada se parece com o que dizem dele: rabo, chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Cavalheiro de voz mansa e racional, bem vestido, apreciador de desodorantes finos, me surpreende sempre pela lógica dos seus argumentos. Nada de futilidades. Só fala sobre o essencial, estilo que aprendeu com Deus, nos anos em que foi seu discípulo. Percebi que era ele quando notei que trazia na sua mão direita o martelo e, na esquerda, a bigorna. Pois esta é a sua missão: martelar as certezas, ferro contra ferro, para ver se sobrevivem ao teste.

Já se preparava para dar a primeira martelada quando o interrompi:

- Que é isto que você vai bater? Acho que vai se partir em mil pedaços…

A coisa que estava sobre a bigorna me parecia feita de louça, um bibelô delicado e frágil, e lamentei que o diabo fosse esmigalhá-la.

- Não tenho outra alternativa – ele me respondeu. – É parte de uma aposta que fiz com Deus. Este bibelô delicado é o casamento. E você pode estar certo: não resistirá ao ferro do meu martelo!

Fiquei indignado que ele estivesse maquinando coisa tão perversa e passei ao ataque.

- Não é à toa que os religiosos dizem que você é o anti-Deus. Deus junta. Você separa! A sua bigorna já destruiu muitos lares!

Ele não tinha pressa. Descansou o seu martelo e me falou com voz imperturbada:

- Já estou acostumado às calúnias. Mas não existe coisa alguma mais distante da verdade. Se há uma coisa que eu desejo é um casamento duradouro, até que a morte os separe. Se ponho o casamento na bigorna é justamente para provar que a receita do Criador não funciona. A minha é muito mais eficaz.

Como o meu silêncio indicasse minha disposição em ouvi-lo, ele continuou a falar:

- Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que esta união teria de ser sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei. Argumentei:

- Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração efêmera! Quem é colado com o amor logo se separa!

Citei o poeta: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!” Amor é chama tênue, fogo de palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga. Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho… Amor é bibelô de louça. Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de um outro amor. Qualquer tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as ilusões do amor.

- Foi aí que nos separamos – ele continuou.

- Não porque discordássemos que casamento deveria ser eterno. É isto que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um romântico. Eu sou um realista.

- Qual foi então a sua proposta? Que cola deveria ser usada?- perguntei, perplexo.

- O ódio. – respondeu ele. – Enganam-se aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas. Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se apaga nunca. Por fora pode parecer adormecido. No fundo, as chamas crepitam. A diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro, voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois, moendo-se mutuamente numa máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de fazer o outro infeliz!

Com estas palavras ele tomou do seu martelo e voltou ao seu trabalho:

- Tenho de provar que eu, e não Deus, sou quem sabe a receita do casamento que só a morte pode separar.

Eu me persignei três vezes e compreendi que o inferno está mais perto do que eu pensava.

O amor vive neste sutil fio de conversação, balançando-se entre a boca e o ouvido.

Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardim por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles.

Deus é leve e ri.

E é assim que as religiões se multiplicam, porque os desejos dos homens não têm fim, e os seus santuários se enchem de santos de todos os tipos.

A beleza é a face visível de Deus.

Agora é o tempo da felicidade. Cada novo dia é um milagre de graça, uma taça de prazer que deve ser bebida até o fim, sem deixar para amanhã. “Tempus fugit”! Portanto, carpe diem – colha o que se inicia como quem colhe uma flor que nunca mais se repetirá.

Rubem Alves
O retorno e terno. São Paulo: Papirus, 1992.

As razões de poder transformam crimes em heroísmo.

Num dos meus momentos de vagabundagem, um pensamento me apareceu que fez uma ligação metafórica entre lâmpadas e inteligências que nunca me havia passado pela cabeça. Tratei, então, de seguir a trilha. As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60 watts, de 100 watts, de 150 watts etc. Qual é a melhor lâmpada? Parece que as de 150 watts são as melhores porque iluminam mais. Também as inteligências servem para iluminar. Tanto assim que se diz "tive uma ideia luminosa!". E nos gibis, para dizer que um personagem teve uma boa ideia, o desenhista desenha uma lâmpada acesa sobre a sua cabeça. E também as inteligências, à semelhança das lâmpadas, têm potências diferentes. Os psicólogos inventaram testes para atribuir números às inteligências. A esses números deram o nome de QI, coeficiente de inteligência. Segundo as mensurações dos psicólogos, há QIs de 100, de 150, de 200... Ah! Uma pessoa com QI200 deve ser maravilhosa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa. Todo pai quer ter filho inteligente. Mas as lâmpadas não são objetos de contemplação. Não se fica olhando para elas. Olhamos para aquilo que elas iluminam. Uma lâmpada de 150 watts pode iluminar o rosto contorcido de um homem numa câmara de torturas. E uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe dando de mamar ao filhinho. As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam. As inteligências valem pelas cenas que iluminam. Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E há inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma vela, que iluminam o rosto de crianças e jardins. A inteligência pode estar a serviço da morte ou da vida. A inteligência, pobrezinha, não tem o poder para decidir o que iluminar. Ela é mandada. Só lhe compete obedecer. As ordens vêm de outro lugar. Do coração. Se o coração tem gostos suínos, a inteligência iluminará chiqueiros, porcos e lavagem. Se o coração gosta de crianças e jardins, a inteligência iluminará crianças e jardins. Por isso é mais importante educar o coração que fazer musculação na inteligência. Eu prefiro as inteligências que iluminam a vida, por modestas que sejam.

Uma das missões da poesia é colocar palavras no lugar da dor. Não para que a dor termine, mas para que ela seja transfigurada pela beleza.

O que faço é tentar pintar com palavras as minhas fantasias diante do assombro que é a vida.

O corpo humano se alimenta também de ausências...

"O olho só é olho se for transparente"
E Deus se dá transparente e invisível
Através dele vemos a vida com novos olhos
E ele se dá a nós por tudo que nos faz ver

As pessoas são aquilo que elas amam.

Nos movemos mais pelo que nos falta do que pelo que possuímos!

O desejo que move os poetas não é ensinar, esclarecer, interpretar. O desejo que move os poetas é fazer soar de novo a melodia esquecida.

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? (…) Dizem as escrituras sagradas: “Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer”. A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.