Entrega sem Limites
Um homem sábio viverá tanto nos limites da sua presença de espírito quanto nos dos seus próprios rendimentos.
Há uma medida nas coisas; existem enfim limites precisos, / além dos quais e antes dos quais o bem não pode subsistir.
Mergulha, sem limites, no espanto e na estupefacção; deste modo podes ser sem limites, assim podes ser infinitamente.
O ponto de partida deve ser: “Não sei.” O que é uma entrega total.
Morte do Leiteiro
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
O homem se entrega por inteiro e pela imaginação às coisas que não tem e que não conhece, nelas concentrando seu desejo e sua esperança.
E eu me perguntava, quase já sem agüentar mais, sem entender tamanha entrega burra, quando isso finalmente teria um fim. Quando minha coluna ia voltar a ser ereta, minha cabeça erguida e meus passos firmes? Quando eu iria superar você?
“Gosto quando se entrega pra mim. Quando demonstra que esta feliz por estar comigo, quando ri de qualquer coisinha besta que eu digo. Sei lá, isso me faz bem. Me faz pensar que você gosta dessa coisa de “estar junto”, e que nada mais te importa quando somos só você e eu.”
A garantia única é que eu nasci. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.