Ele

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Antes de esquecer o passado, você tem que considerar “ele” como passado. Se não, não dá certo.

"Ele é só um cara...

É só um cara.Não o ‘denso lago de mistérios gozosos onde você mergulhou e ainda não submergiu’.Nem o ‘sustentáculo de todos os ossos de seu corpo’, tampouco ‘o mármore onde está gravada a suprema razão de sua existência’.É só um cara.

E quer mesmo saber?É um cara como todos os outros caras.

Esse que te perguntou as horas no meio da rua – podia ter sido ele e você nem ligou.O mendigo, o ginecologista, o padre, o dealer.Ele estava ali o tempo todo.E ele não estava.Ele é só um deles.Vários.Uma legião.E ninguém.

É só um cara.E não a sua vida.E não todos os dias da sua história.E não todas as suas lágrimas juntas em um único sábado solitário.Ele não é o destino.É um cara.Existem muitos destinos.

Ele é só um cara que mal sabe escolher os próprios perfumes.Não sabe sangrar.Não sabe que nome daria a um filho.Não pode ficar mais tempo. Ele é só um cara perdido como muitos outros caras que você encontrou. E perdeu.

Ele é só um cara.E você já esqueceu outro caras antes."

Ele não é só um cara, esse sim, esse esquenta as suas mãos e escuta os seus impropérios e gracinhas com o mesmo apego.

Faz perguntas, faz suas unhas, faz comida, te leva o mundo numa bandeja quando você acorda. Ele não te deixou apodrecendo ali onde você não pudesse incomodar, não não: ele chegou meia hora antes e trouxe flores cor de laranja. Depois ainda te levou para algum lugar cheio de estrelas e pernilongos. E te avisou que quando seus olhos borraram do rímel.

Ele é diferente de tudo o que é errado em seu mundo e em outros mundos. Não te poupou, porque sabe que você é esperta. Você diria que ele salvou sua vida se não soasse tão dramático. E se isso não fosse mentira – a sua vida velha não merecia ser salva e ele te trouxe uma vida nova que inventou só pra você.

Ele te faz sofrer muito, porque sofrer é importante. Ele não faz planos ou promessas, só surpresas. Te ensinou a gostar de surpresas, a esperar, ele te deixa esperando, não deixa nada muito claro, você voltou a roer unhas, você nunca sabe, mas a verdade é que ele está sempre ali, ou logo adiante.

Ele é diferente. Ele não é só um cara. Ele te ouve como se te entendesse, fala como quem soubesse o que dizer e não diz nada muitas vezes, porque ele entende os silêncios. Ele mente pra não te chatear e não te deixa descobrir. Ele existe. Você sabe que seriam bons amigos, bons parceiros, bons inimigos, mas você prefere ser a ´
garota dele. E que serão importantes na história um do outro para sempre, independentemente de tudo que estiver pra acontecer.

Porque ele não é só um cara. Você não quer mais só um cara. E ele é tudo que você quer hoje.

Ele disse: - Você parece mel. Ela disse: - E você, um girassol.

... e ele chama, e a gente volta, e briga, e ama, e sofre, e ama, e ama, e ama, e desama.

Ninguém pode asfixiar anular e armodaçar mais um ser humano do que ele mesmo.

O que pode se esperar de um ser humano perdido?
Que ele viva como nunca fosse morrer
Ou que ele morra como nunca tivesse vivido?
O que pode se esperar de uma pessoa que não pode sonhar...

Charlie Brown Jr

Nota: Trecho da música Be Myself.

“Felizmente, ele e o Poeta reuniram suas ruínas e ajudaram-se mutuamente a sobreviver ao demônio da culpa. Saíram pelas estradas, dormiram ao relento e viajaram juntos para o epicentro dos seus terremotos emocionais. Viram as perdas por outros ângulos, aceitaram suas limitações, cantaram, sorriram, brincaram com a vida, deixaram de brigar com ela.”

(O futuro da Humanidade. - Página: 65)

Para que o amor seja pra sempre
Ele é muito simples de ser cuidado
- Tal como o perfume, precisa ser sentido
- Tal como o néctar, precisa ser provado
- Tal como a melodia, precisa ser cantado
- Tal como o poema, precisa ser declamado
E assim sendo, eis que o amor para ser pra sempre
Só precisa ser muito amado!

Pisa que ele gruda, gruda que ele pisa.

Aviões do Forró

Nota: Trecho da música "Pisa Que Ele Gruda (É Melhor Se Ligar)".

"Eu queria você aqui
Mas você está aí.
E o aí não tem idéia da sorte que ele tem…"

Porque, no momento em que partirmos em busca do amor, ele também parte ao nosso encontro

Para mim, o órgão do Fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o dedo: o que está ligado ao disparador da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando as máquinas ainda as tem). Gosto desses ruídos mecânicos de uma maneira quase voluptuosa, como se, da Fotografia, eles fossem exatamente isso - e apenas isso - a que meu desejo se atém, quebrando com seu breve estalo, a camada mortífera da Pose.

Nem vinte

Ele não gosta de cinema europeu. Não sabe o que é crème brulée, De La Guarda e nunca ouviu falar no filme "O filho da noiva".
Ele é estagiário, tem um carro cheio de apetrechos esportivos, acha Frank Sinatra um velho aí, faz questão absoluta de pagar meu almoço com ticket e, sempre que eu elogio uma roupa, um acessório ou um perfume, responde sem pudor: "Foi minha mãe que me deu."
De cada cinco palavras, uma é “irado”, outra é "bagulho" e as outras três podem ser intercaladas com "tipo assim" ou "se pá".
Se essa descrição me fosse feita há alguns meses, eu, que sempre defendi romances com experientes e articulados homens mais velhos, certamente riria e ignoraria tal existência, nem cogitando uma aproximação.
Mas o que seria da vida se o mundo não nos pregasse essas surpresas? Se o mundo não desmentisse nossas verdades absolutas? O mundo é divertido. E por falar em diversão, tenho andado de volta aos meus quinze anos.
Sempre defendi, eu e minhas verdades irrefutáveis, que os homens mais velhos e blá, blá, blá, eram os melhores na arte do acasalamento. Pois muito bem, fique com eles então, porque eu ando satisfeita demais para lembrar que eles existem.
Imaginem a minha felicidade ao ver um casal na mesa ao lado, discutindo incansavelmente a relação a dois, enquanto eu e meu menino discutíamos entre batata frita com catchup e batata frita com mostarda? Sendo que eu preferia a segunda opção e ele a primeira. Esse era o nosso conflito.
No fim acabamos misturando tudo porque, enquanto o mundo adulto pensa, a gente beija, um milhão de beijos para esquecer o mundo.
Ele tem um sorriso sem marcas, de uma doçura sem mágoas. Ele é limpo de dores do mundo. E ainda que isso torne a sua alegria um pouco sem profundidade, faz com que a superfície brilhe tanto que nada mais importe.
Ele anda o dia inteiro pra cá e pra lá, resolvendo seus problemas de estagiário com seu cabelo tigelinha, sua falta de pelos e o rosto mais lindo do mundo. E eu vou junto. O dia inteiro para lá e para cá, o dia inteiro pra frente e para trás enquanto ele vai, o dia inteiro disfarçando enquanto ele vem. O dia inteiro desejando que ele apareça para me dar vida, e que ele desapareça para me dar ar.
Você esqueceria qualquer gíria se prestasse atenção na boca carnuda, dura e bem desenhada que as pronuncia. Você esqueceria qualquer "não sei" se prestasse atenção em tudo que suas mãos, pernas e línguas sabem.
Você esqueceria qualquer colo maduro se prestasse atenção a quantas horas está naquele colo que nunca cansa, que nunca pára, que é tão jovem, macio e forte. Você esqueceria qualquer acalanto intelectual se tivesse suas costas e seus cabelos acariciados por horas, por mãos leves, por intenções leves, por momentos silenciosos jamais despertados por celulares, obrigações e cobranças da vida adulta.
Quando a voz dele, que ainda não é grossa, que ainda não é firme, sussurra para mim tudo o que eu preciso ouvir para me sentir de novo com o meu corpo de dezoito anos, eu sei que aquela é a voz que minha alma precisava. Quando ele sorri desarmado, limitado e impotente, para todas as minhas dúvidas, inconstâncias e chatices, eu sei que é daquele sorriso que minha alma precisava.
Ele não faz muito pela minha angústia existencial, até por não saber. E consegue tudo de mim. Consegue até o que ninguém nunca conseguiu: me deixar leve.
Sabe rir mole de bobeira? Sabe dançar idiota de alegria? Sabe dormir gemendo de saudade? Sabe tomar banho sorrindo para a sua pele? Sabe cantar bem alto para o mundo entender? Sabe se achar bonita mesmo de pijama e olheiras? Sabe ter ânsia de vômito segundos antes de vê-lo e ter fome de mundo segundos depois de abraçá-lo? Sabe não agüentar? Sabe sobrevoar o frio, o cinza, os medos, os erros e tudo que pode dar errado? Ele consegue fazer com que eu me perdoe por apenas viver sem questionar tanto.
Eu quero parar com tudo isso, ele é um menino que não pode acompanhar minha louca linha de raciocínio meio poeta, meio neurótica, meio madura. Eu quero colocar um fim neste tormento de desejar tanto quem ainda tem tanto para desejar por aí. E aí eu me pergunto: pra quê? Se está tão bom, se é tão simples. Ele me ensinou que a vida pode ser simples, e tão boa.
É isso, sei que vocês vêm aqui para ler neuroses, mas estou de férias delas. Umas férias, tipo assim, se pá, iradas.

MEU CANDIDATO A PRESIDENTE

Ele, ou ela, tem entre 40 e 60 anos, talvez uma pouco menos ou um pouco mais, a chamada meia-idade, em que já se fizeram algumas besteiras e por conta delas sabe-se o que vale a pena e o que não vale nessa vida.

Nasceu no Norte ou no Sul, não importa., desde que tenha estudado, e se foi em escola pública ou privada, também não importa, desde que tenha lido muito na juventude e mantido o hábito até hoje, e que através da leitura tenha descoberto que o mundo é injusto, mas não está estragado para sempre, que um pouco de idealismo é necessário, mas só um pouco, e que coisas como bom senso e sensibilidade não precisam sobreviver apenas na ficção.

Ele, ou ela, é prático, objetivo e bem-humorado, mas não é idiota. Está interessado em ter parceiros que governem como quem opera, como quem advoga, como quem canta, como quem leciona: com profissionalismo e voltado para o bem do outro, e que o dinheiro seja um pagamento pelos serviços prestados, não um meio ilícito de enriquecer. Alianças, ele quer fazer com todos os setores da sociedade, e basta, e já é muito.

Ele, ou ela, sabe comunicar-se porque seu ofício exige isso, mas comunicar-se é dizer o que pensa e o que faz, e como faz, e por que faz, e se ele possui ou não carisma, é uma questão de sorte, se calhar até tem. Mas não é bonito nem feio: é inteligente. Não é comunista nem neoliberal: é sensato. Não é coronelista nem ex-estudante de Harvard: é honesto.

Meu candidato, ou candidata, é casado, ou solteiro, ou ajuntado, ou gay, pode ter filhos ou não; problema dele. Paga os impostos em dia, tem orgulho suficiente para zelar por seu currículo, possui um projeto realista e bem traçado, e não está muito interessado em ser moderno, mas em ser útil.

Meu candidato, ou candidata, é católico, evangélico, ateu, budista, não sei, não é da minha conta. É avançado quando se trata de melhorar as condições de vida das minorias estigmatizadas e das maiorias excluídas, e é retrógrado em questão de finanças; só gasta o que tem em caixa, e não tem duas.

Ele, ou ela, é uma pessoa que tem idéias praticáveis, que aceita as boas sugestões vindas de outros partidos, que não tem vergonha de não ser malandro e sim vergonha de pertencer a uma classe tão desprovida de credibilidade, e tenta reverter isso cumprindo sua missão, que é curta, e sendo curta ele concentra nela todos os seus esforços.

Pronto. Abri meu voto.

Eu só queria que ele aparecesse, o homem que vai me olhar de um jeito que vai limpar toda a sujeira, o rabisco, o nó.
O homem que vai ser o pai dos meus filhos e não dos meus medos.

A ÚLTIMA PRIMEIRA VEZ

Ele toca a campainha e, ao contrário de todas as vezes anteriores, ela não corre pra terminar de se arrumar. Ela não coloca brinco na orelha, não retoca o batom, não troca a sandália de dedos pelo salto alto. Ela atende a porta de chinelo velho e cabelo preso pra trás da orelha com piranha de plástico daquelas de duas por um Real. Ele a olha nos olhos, diz que está com saudade e a abraça com tanta força que parece que vai quebrar aquele corpinho magrelo. Ela fica na ponta dos pés para abraçá-lo e, nesse instante, se lembra que costumava fazer isso para alcançá-lo.

Foi tudo muito estranho pela primeira vez. O tênis esquisito dele não combinava mais com ela. Aquela camisa larga e aquela bermuda mais pareciam seu irmão de 17 anos. Nada nele havia mudado, mas era tudo diferente pra ela. A voz, o sorriso meio sem graça, o cabelo liso meio sei lá, as canelas finas, as mãos quadradas num tom rosado de tão brancas. Tudo tão igual sempre foi e tão estranho pra ela.

A vida dela andou nesse um ano e pouco que eles ficaram sem se falar. Ela mudou. Piorou em algumas coisas, melhorou em outras, mas mudou. Ela, que não gostava de rave e andava pra música eletrônica, agora compra ingresso com um mês de antecedência. Ela trocou a cama por uma melhor, o sofá da sala por um branco lindo, mudou os móveis de lugar depois do Natal, trocou o carro por outro que anda muito mais. Mudou o tom do cabelo, o estilo das roupas. Fez vários novos amigos. Para ele, parece que o tempo não passou. Ele acha que pode chamá-la pelos apelidos que ele costumava inventar pra ela, acha que pode pegar nela onde bem entender e que pode arrumar o cabelo dela pra trás da orelha. Não. Eles ainda têm algum assunto, mas ela já não faz mais piadinhas pra implicar com a vida de solteiro dele. Ela não é mais dissimulada quando ele pergunta se ela está com alguém. Ela está solteira e não precisa mais fingir que está de rolo com alguém pra fazer ciúme nele. Não faz mais sentido. Nada mais faz sentido. As brincadeiras, o abraço, o toque do corpo. Acabou a emoção, acabou o brilho no sorriso, acabou o sorriso nos olhos. Coisas do tempo.

Ele partiu sem nenhuma dor. Ela fechou a porta e sua vida continuou de onde estava. Pela primeira vez, ela fechava aquela porta sem sentar na escada e chorar por ele ter ido embora pra sempre. Pela primeira vez, ele saiu sem que ela o observasse partir com o coração apertado. Pela primeira vez, ele foi embora sem deixar uma gotinha de esperança de que ela pudesse tê-lo de volta na vida dela. Pela primeira vez, ele partiu sem que eles tivessem trocado mais do que um abraço apertado. Pela primeira vez, ele se foi sem que eles tivessem remexido o passado ou chorado porque alguma coisa não deu certo entre eles. Pela primeira vez, ele foi embora de verdade. Pela última vez, ele foi embora.

PELA PASSAGEM DE UMA GRANDE DOR

(Ao som de Erik Satie)

A primeira vez que o telefone tocou ele não se moveu. Continuou sentado sobre a velha almofada amarela, cheia de pastoras desbotadas com coroas de flores nas mãos. As vibrações coloridas da televisão sem som faziam a sala tremer e flutuar, empalidecida pelo bordô mortiço da cor de luxe de um filme antigo qualquer. Quando o telefone tocou pela segunda vez ele estava tentando lembrar se o nome daquela melodia meio arranhada e lentíssima que vinha da outra sala seria mesmo “Desespero agradável” ou “Por um desespero agradável”. De qualquer forma, pensou, desespero. E agradável.
A luz de mercúrio da rua varava os orifícios das cortinas de renda misturando-se, azulada, à cor meio decomposta do filme. Pouco antes do telefone tocar pela terceira vez ele resolveu levantar-se — conferir o nome da música, disse para si mesmo, e caminhou para dentro atravessando o pequeno corredor onde, como sempre, a perna da calça roçou contra a folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar, lembrou, como sempre. E um pouco antes ainda de estender a mão para pegar o telefone na estante, inclinou-se sobre as capas de discos espalhadas pelo chão, entre um cinzeiro cheio e um caneco de cerâmica crua quase vazio, a não ser por uns restos no fundo, que vistos assim de cima formavam uma massa verde, úmida e compacta. “Désespoir agréable”, confirmou. Ainda em pé, colocou a capa branca do disco sobre a mesa enquanto repetia mentalmente: de qualquer forma, desespero. E agradável.
— Lui? — A voz conhecida. — Alô? É você, Lui?
— Eu — ele disse.
— O que é que você está fazendo?
Ele sentou-se. Depois estendeu o braço em frente ao rosto e olhou a palma aberta da própria mão. As pequenas áreas descascadas, ácido úrico, diziam, corroendo lento a pele.
— Alô? Você está me ouvindo?
— Oi — ele disse.
Perguntei o que é que você estava fazendo?
— Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo tevê. — Fechou a mão. — Agora ia fazer um café. E dormir.
Hein? Fala mais alto.
— Mas não sei se tem pó.
—O quê?
— Nada, bobagem. E você?
Do outro lado da linha, ela suspirou sem dizer nada. Então houve um silêncio curto e em seguida um clique seco e uma espécie de sopro. Deve ter acendido um cigarro, ele pensou. Dobrou mecanicamente o corpo para a esquerda até trazer o cinzeiro cheio de pontas para o lado do telefone.
— Que que houve? — perguntou lento, olhando em volta à procura de um maço de cigarros.
— Escuta, você não quer dar uma saída?
— Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.
— Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um.
— Já passa das dez — ele disse.
A voz dela ficou um pouco mais aguda.
— E vir aqui, quem sabe. Também você não quer, não é? Tenho uma vodca ótima. Daquelas. Você adora, nem abri ainda. Só não tenho limão, você traz? — A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o fone do ouvido. Por um momento ficou ouvindo a melodia distante, lenta e arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, algumas folhas amareladas caídas no chão de cimento. Sem querer, quase estremeceu de frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa quando perguntou:
— E se eu fosse até aí?
Os dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Ele contraiu o ombro direito, equilibrando o fone contra o rosto, e puxou devagar o maço.
— Sabe o que é — disse.
—Lui?
Com os dentes, ele prendeu o filtro de um dos cigarros. Mordeu-o, levemente.
— Alô, Lui? Você está aí?
Ele contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase se desequilibrou. Tragou fundo. Tornou a pegar o fone com a mão e soltou pouco a pouco o ombro dolorido soprando a fumaça.
— Eu já estava quase dormindo.
— Que música é essa aí no fundo? — ela perguntou de repente.
Ele puxou o cinzeiro para perto. Virou a capa do disco nas mãos.
— Chama-se “Por um desespero agradável” — mentiu. — Você gosta?
— Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?
Ele bateu o cigarro três vezes na borda do cinzeiro, mas não caiu nenhuma cinza.
— Um cara aí. Um doido.
— Como ele se chama?
— Erik Satie — ele disse bem baixo. Ela não ouviu.
— Lui? Alô, Lui?
— Digue.
— Estou te enchendo o saco? — Outra vez ele escutou o silêncio curto, o clique seco e o sopro leve. Deve ter acendido outro cigarro, pensou. E soprou a fumaça.
— Não — disse.
— Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.
— Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.
— Não consigo dormir — ela disse muito baixo.
— Você está deitada?
— É, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.
Ele tragou fundo. Enquanto soprava a fumaça, curvou outra vez o corpo para apanhar
o caneco de cerâmica. Enfiou o indicador até
o fundo, depois mordiscou as folhas miúdas
com os incisivos e perguntou:
— O que é que você estava lendo?
— Nada, não. Uma matéria aí numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.
— What about?
—Hein?
— O que você estava lendo.
Ela tossiu. Depois pareceu se animar.
— Umas coisas assim, ecologias, sabe? Diz que se você só planta uma espécie de coisa na terra por muitos anos, ela acaba morrendo. A terra, não a coisa plantada, entende? Soja, por exemplo. Diz que acaba a camada de húmus. Parece que eucalipto também. Depois aos poucos vira deserto. Vão ficando uns pontos assim. Vazios, entende? Desérticos. Espalhados por toda a terra.
O disco acabou, ele não se mexeu. Depois, recomeçou.
— Assim como se você pingasse uma porção de gotas de tinta num mata-borrão — ela continuou. — Eles vão se espalhando cada vez mais. Acabam se encontrando uns com os outros um dia, entende? O deserto fica maior. Fica cada vez maior. Os desertos não param nunca de crescer, sabia?
— Sabia — ele disse.
— Horrível, não?
— E os sprays?
—O quê?
— Os sprays. O que é que tem os sprays?
— Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer tubo, entende? Faz assim ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?
— Ozônio — ele disse.
— Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.
— Já deve estar toda furadinha então — ele disse.
—O quê?
— Deve estar toda furada — ele repetiu bem devagar. — A camada. A biosfera. O ozônio.
— Já pensou que horror? Você sabia disso Lui?
Ele não respondeu.
— Alô, Lui? Você ainda está aí?
— Estou.
— Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?
— Estou cansado.
Do outro lado da linha, ela riu. Pelo som, ele adivinhou que ela ria sem abrir a boca, apenas os ombros sacudindo, movendo a cabeça para os lados, alguns fios de cabelo caídos nos olhos.
— Não estou te alugando? — ela perguntou. — Você sempre diz que eu te alugo. Como se você fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, queria uma piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar-condicionado. Que tipo de casa você queria ser, Lui?
— Eu não queria ser casa.
- Como?
— Queria ser um apartamento.
— Sei, mas que tipo?
Ele suspirou:
— Uma quitinete. Sem telefone.
— O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?
— Um chá, eu ia fazer um chá.
— Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.
— Não tem mais pó. — Ele lambeu a ponta do indicador, depois umedeceu o nariz por dentro. Então sacudiu o cinzeiro cheio de pontas queimadas e cinza. Algumas partículas voaram, caindo sobre a capa branca do disco, com um desenho abstrato no centro. Com cuidado, juntou-as num montinho sobre o canto roxo da figura central. — Nem coador de papel. E acabei de me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima, quer ver? Guardei aqui dentro. — Ele equilibrou o fone com o ombro e abriu a cadernetinha preta de endereços.
— Chá não tem bula — ela resmungou. Parecia aborrecida, meio infantil. — Bula é de remédio.
— Tem sim, esse chá tem. Quer ver só? — Entre duas fotos polaroid desbotadas, na contracapa da caderneta, encontrou o retângulo de papel amarelo dobrado em quatro.
— Lui? Você não quer mesmo vir até aqui? Sabe — ela tornou a rir, e desta vez ele imaginou que quase escancarava a boca, passando devagar a língua pelos lábios ressecados de cigarro —, eu acho que fiquei meio impressionada com essa história dos desertos, dos buracos, do ozônio. Lui, você acha que o mundo está mesmo no fim?
Ele desdobrou sobre a mesa o papel amarelo, ao lado das duas fotos tão desbotadas quanto as manchas redondas de xícaras quentes na madeira escura. Uma das fotos era de uma mulher quase bonita, cabelos presos e brincos de ouro em forma de rosas miudinhas. A outra era de um rapaz com blusa preta de gola em V, o rosto apoiado numa das mãos, leve estrabismo nos olhos escuros.
— Sem falar nas usinas nucleares — ele disse. E com a ponta dos dedos, do canto roxo do desenho na capa do disco, foi empurrando o montículo de cinzas por cima das formas torcidas, marrom, amarelo, verde, até o espaço branco e, por fim, exatamente sobre o rosto do rapaz da foto.
— Lui? — ela chamou inquieta. — Encontrou o negócio do tal chá?
— Encontrei.
— Você está esquisito. O que é que há?
— Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? É inglês, você entende um pouco, não é? — Ela não respondeu. Então ele leu, dramático: —... is exceilent for ali types of nervous disorders, paranoia, schizophrenia, drugs effects, digestive problems, hornionai diseases and other disorders... — Começou a rir baixinho, divertido: — Entendeu?
— Entendi — ela disse. — É um inglês fácil, qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? É inglês?
Ele continuou rindo:
— Chinês. Aqui embaixo diz produced in China. — Com a cinza, cobriu todo o olho estrábico do rapaz. — Drugs effects é ótimo, não é?
— Maravilhoso — ela falou. — O disco tá tocando de novo, já ouvi esse.
— Tá bom — ela disse.
— Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando começavam a falar desse jeito sempre era um sinal tácito para algum desligar. Mas não quis ser o primeiro.
— Vou tirar amanhã — ela falou de repente.
— Hein?
— Nada. Vai fazer teu chá.
— Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. — Abriu a mão e olhou as manchas branquicentas na palma. — Não é essa que é boa para a pele?
— Acho que aquela é a A. Não entendo muito de vitaminas.
— Nem eu. A C eu sei que é a da gripe, todo mundo sabe. Qual será a que cura os tais drugs effects? Cheirei todas hoje. Estou com aquele... vazio intenso, sabe como?
— Não sei. — De repente ela parecia apressada. — Vou desligar.
— Você ligou o rádio?
— Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?
— “Por um desespero agradável” — ele mentiu outra vez, depois corrigiu: — Não. É só “Desespero agradável”.
— Agradável?
— É, agradável. Por que não?
— Engraçado. Desespero nunca é agradável.
— Às vezes sim. Cocaína, por exemplo.
— Você só pensa nisso?
— Não, penso em fazer um chá também.
— Hein?
— Mas essa que tá tocando agora é outra, ouça. — Ele ergueu um momento o fone no ar em direção às caixas de som e ficou um momento assim, parado. — São todas muito parecidas. Só piano, mais nada. — A cinza cobria o rosto inteiro do rapaz na foto. — Essa agora chama-se “À l’occasion d’une grande peine”.
— Sei.
— É francês.
— Sei.
— Pena, dor. Não pena de galinha. Uma grande dor. Occasion acho que é ocasião mesmo. Mas podia ser passagem. Melhor, você não acha? Passagem parece que já vai embora, que já vai passar. O que é que você acha?
— Vou ver se durmo. — Ela bocejou. — Francês, inglês, chá chinês. Você hoje está internacional demais para o meu gabarito.
— Escapismo — ele disse. E acendeu outro cigarro.
— Uma pena que você não queira mesmo sair. — A voz dela parecia mais longe. — Estou pensando em abrir mesmo aquela garrafa de vodca.
— Antes de dormir? — ele falou. — Toma leite morno, dá sono. Põe bastante canela. E mel, açúcar faz mal.
— Mal? Logo quem falando...
— Faça o que eu digo, não faça o que eu. A cinza descia pelo pescoço, quase confundida com o preto da gola. A voz dela soava um tanto irônica, quase ferina.
— Ué, agora você resolveu cuidar de mim, é?
— Vou fazer meu chá — ele disse.
— Como é mesmo que se pronuncia?
Esquizôfrenia?
— Não, é squizofrênia. Tem acento nesse e aí. E se escreve com esse, cê, agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.
— E nenhum ipsilone? Nenhum dábliu? — ela perguntou como se estivesse exausta. E amarga. — Adoro ipsilones, dáblius e cás. Tão chique.
— D ‘accord — ele disse. — Mas não tem nenhum.
— Tá bom — ela riu sem vontade. Em seguida disse tchau, até mais, boa-noite, um beijo, e desligou.
Ele abriu a boca, mas antes de repetir as mesmas coisas ouviu o clique do fone sendo colocado no gancho do outro lado da cidade. O disco chegara novamente ao fim, mas antes que recomeçasse ele curvou-se e desligou o som. Em pé, ao lado da mesa, amarfanhou o papel amarelo e jogou-o no cinzeiro. Depois soprou as cinzas do rosto do rapaz. Algumas partículas caíram sobre a foto da mulher. Andou então até o pequeno corredor, curvou-se sobre a planta e com a brasa do cigarro fez um furo redondo na folha. Respirou fundo sem sentir cheiro algum. A sala continuava mergulhada naquela penumbra bordô, baça, moribunda, a almofada fosforescendo estranhamente esverdeada à luz azul de mercúrio. Ele fez um movimento em direção ao telefone. Chegou a avançar um pouco, como se fosse voltar. Mas não se moveu. Imóvel assim no meio da casa, o som desligado e nenhum outro ruído, era possível ouvir o vento soprando solto pelos telhados.

Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos.
Ele deixa. (Ele não nasceu para nós, nem nós nascemos para Ele, nós e Ele somos ao mesmo tempo.) Ele está ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estão sendo, mas Ele não impede que a gente se junte a Ele e, com Ele, fique ocupado em ser, numa intertroca tão fluida e constante – como a de viver. Ele, por exemplo, Ele nos usa totalmente porque não há nada em cada um de nós de que Ele, cuja necessidade é absolutamente infinita, não precise. Ele nos usa e não impede que a gente faça uso Dele. O minério que está na terra não é responsável por não ser usado. (...)

(Na vida e na morte tudo é lícito, viver é sempre questão de vida-e-morte.)

Clarice Lispector
A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Ele tinha momentos ocasionais de silêncio que tornavam sua conversa um prazer.

É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto...