Demônio
Coisas falsas são sempre mais doces. Salvação, amor, felicidade e afins. Coisas doces são prejudiciais. Você sabe qual é a pior de todas? Felicidade. Os humanos acabam infelizes porque tentam ser felizes.
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio.
A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" -
Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: "Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa:
"Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"
Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?
Nem todo anjo é bom e nem todo demônio é mau... as vezes os demônios são mais sinceros em sua maldade.
Educação sem valores, por mais útil que seja, parece suficiente para tornar o homem um demônio mais inteligente.
Para mim, foi como se você fosse uma espécie de demônio, conjurado de meu inferno pessoal para me arruinar.
Hoje não estou bem! Acordei triste e pensativa ao ver o meu anjo e o meu demônio brigando dentro de mim. E eu só lá no meio deles! Sem ação e reação. Sei lá... É como se o meu coração parasse de funcionar por alguns momentos e só Deus sabe se ele voltará a bater novamente ou não.
"Mas há um ditado em minha família: "mate um demônio hoje, encare o diabo amanhã". Mesmo que você dance no túmulo deste demônio, você não deixa de se perguntar "ele estava sozinho?", "ou há outros mais mortíferos para entrar?" E mesmo que você celebre ter vencido a batalha, será que você está realmente preparado para a guerra? Então, enquanto vestimos as armaduras para essa nova batalha, devemos cuidas das nossas feridas primeiro, começando com as mais profundas."
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência’ – [...] Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal em que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’.
- O tempo é fluido por aqui – disse o demônio.
Ele soube que era um demônio no momento em que o viu. Assim como soube que ali era o inferno. Não havia nada mais que um ou outro pudessem ser.
A sala era comprida, e do outro lado o demônio o esperava ao lado de um braseiro fumegante. Uma grande variedade de objetos pendia das paredes cinzentas, cor de pedra, do tipo que não parecia sensato ou reconfortante inspecionar muito de perto. O pé-direito era baixo, e o chão, estranhamente diáfano.
– Chegue mais perto – ordenou o demônio, e ele se aproximou.
O demônio era magro como uma vara e estava nu. Ele tinha muitas cicatrizes, parecia ter sido esfolado em algum momento num passado distante. Não tinha orelhas nem genitais. Os seus lábios eram finos e ascéticos, e os olhos eram olhos de demônio: tinham visto demais e ido muito longe, e frente ao seu olhar ele se sentiu menor que uma mosca.
– O que acontece agora? – ele perguntou.
– Agora – disse o demônio com uma voz que não demonstrava sofrimento nem deleite, somente uma horripilante e neutra resignação – você será torturado.
– Por quanto tempo?
O demônio balançou a cabeça e não respondeu. Ele percorreu lentamente a parede, examinando um a um os instrumentos ali pendurados. Na outra extremidade, perto da porta fechada, havia um açoite feito de arame farpado. O demônio o apanhou com uma de suas mãos de três dedos e o carregou com reverência até o outro lado da sala. Pôs as pontas de arame sobre o braseiro e observou enquanto se aqueciam.
– Isso é desumano.
– Sim.
As pontas do açoite ganharam um baço brilho alaranjado.
– No futuro, você vai sentir saudade desse momento.
– Você é um mentiroso.
– Não – respondeu o demônio. – A próxima parte é ainda pior – explicou pouco antes de descer o açoite.
As pontas do açoite atingiram nas costas do homem com um estalo e um chiado, rasgando as roupas caras. Elas queimavam, cortavam e estraçalhavam tudo o que tocavam. Não pela última vez naquele lugar, ele gritou.
Havia duzentos e onze instrumentos nas paredes da sala, e com o tempo, ele iria experimentar cada um deles.
Por fim, a Filha do Lazareno, que ele acabou conhecendo intimamente, foi limpa e recolocada na parede na ducentésima décima primeira posição. Nesse momento, por entre os lábios rachados, ele soluçou:
– E agora?
– Agora começa a dor de verdade – informou o demônio.
E começou mesmo.
Cada coisa que ele fizera, que teria sido melhor não ter feito. Cada mentira que ele contara – a si mesmo ou aos outros. Cada pequena mágoa, e todas as grandes mágoas. Cada uma dessas coisas foi arrancada dele, detalhe por detalhe, centímetro por centímetro. O demônio descascava a crosta do esquecimento, tirava tudo até sobrar somente a verdade, e isso doía mais que qualquer outra coisa.
– Conte o que você pensou quando a viu indo embora – exigiu o demônio.
– Pensei que meu coração ia se partir.
– Não, não pensou – contestou o demônio, sem ódio. Dirigiu seu olhar sem expressão para o homem, que se viu forçado a desviar os olhos.
– Pensei: agora ela nunca vai ficar sabendo que eu dormia com a irmã dela.
O demônio desconstruiu a vida do homem, momento por momento, um instante medonho após o outro. Isso levou cem anos ou talvez mil – eles tinham todo o tempo do universo naquela sala cinzenta. Lá pelo final, ele percebeu que o demônio tinha razão. Aquilo era pior que a tortura física.
Mas acabou.
Só que, quando acabou, começou de novo. E com uma consciência de si mesmo que ele não tinha da primeira vez, o que de certa forma tornava tudo ainda pior.
Agora, enquanto falava, se odiava. Não havia mentiras nem evasivas, nem espaço para nada que não fosse dor e ressentimento.
Ele falava. Não chorava mais. E, quando terminou, mil anos depois, rezou para que o demônio fosse até a parede e pegasse a faca de escalpelar, ou o sufocador, ou a morsa.
– De novo – ordenou o demônio.
Ele começou a gritar. Gritou durante muito tempo.
– De novo – ordenou o demônio quando ele se calou, como se nada houvesse sido dito até então.
Era como descascar uma cebola. Dessa vez, ao repassar sua vida, ele aprendeu sobre as consequências. Percebeu os resultados das coisas que fizera; notou que estava cego quando tomou certas atitudes; tomou conhecimento das maneiras como infligira mágoas ao mundo; dos danos que causara a pessoas que mais conhecera, encontrara ou vira. Foi a lição mais difícil até aquele momento.
– De novo – ordenou o demônio, mil anos depois.
Ele agachou no chão, ao lado do braseiro, balançando o corpo de leve, com os olhos fechados, e contou a história de sua vida, revivendo-a enquanto contava, do nascimento até a morte, sem mudar nada, sem omitir nada, enfrentando tudo. Abriu seu coração.
Quando acabou, ficou sentado ali, de olhos fechados, esperando que a voz dissesse: “de novo”. Porém, nada foi dito. Ele abriu os olhos.
Lentamente, ficou de pé. Estava sozinho.
Na outra ponta da sala havia uma porta, que, enquanto ele olhava, se abriu.
Um homem entrou. Havia terror em seu rosto, e também arrogância e orgulho. O homem, que usava roupas caras, deu alguns passos hesitantes pela sala e parou.
Ao ver o homem, ele entendeu.
- O tempo é fluido por aqui – disse ao recém-chegado.